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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Meu terceiro dia

Quinta, 21 de fevereiro de 2002, 17h14



- Você é o novato?

- Sou, sim senhor, eu digo.

- Estão precisando de você na sala 2.

A sala 2 é reservada às mulheres. Antes de entrar eu ponho a proteção. Do lado de dentro, Valdemar me espera. Veste um jaleco branco. Olha pra mim e depois para a máscara de médico que uso no rosto e dá uma risada.

- Ainda vai se acostumar com o cheiro, diz. - Depois de um tempo a gente se acostuma com cheiro de tudo.

Valdemar é o legista mais velho. Vai se aposentar em breve, mesmo contra a vontade.

- Quanto tempo mesmo?

- Duas semanas, responde.

Ele me chamou? Valdemar diz que sim e aponta a geladeira. De alto a baixo há gavetas. Todas do mesmo tamanho, quadradas e enferrujadas, com uma maçaneta no meio. Puxa aquela bem no canto, ele ordena, e eu obedeço. Surge uma mulher nua, o corpo com tudo no lugar, mas tão cinzenta que mesmo que não estivesse no necrotério, e sim numa cama de motel, não haveria como dizer que está viva. Dela sai um odor forte de morte e formol, que dribla a máscara e me faz chorar. As lágrimas descem e, enquanto tento pará-las, dou um gemido alto e esquisito, mas Valdemar, inabalável, não nota, está dobrado sobre a virilha dela. Enfia o dedo em um buraco de bala na perna. Na outra mão, por cima da luva de látex, ele me mostra o projétil que retirou. Já me avisaram sobre o Valdemar. Dizem: "O filho da puta tem alma de pedra, não sente porra nenhuma". Eu o ajudo a virar o corpo e depois ele enfia o dedo em mais cinco ou seis buracos nas costas ao mesmo tempo em que assovia "Aquarela do Brasil" e faz anotações. Quando termina, lava as mãos e me manda limpar a sujeira.

- Depois dá um pulo na minha sala e varre aquilo lá, que está tudo uma bagunça.

- Sim, senhor, eu respondo.

- Ah, é seu primeiro dia, não?

- Terceiro.

- Ah, sei. Você não tem medo, tem? Quero dizer, medo da morte...

- Não senhor.

- Que bom. Tô por aqui com os cagões.

Quando ele vai embora, o lugar fica vazio e fantasmagórico. Antes eram só os corpos e o cheiro ruim de formol, mas o silêncio faz tudo ficar pior. Para me acalmar, assovio "Aquarela do Brasil" enquanto devolvo a mulher à gaveta e limpo o sangue do chão. Quando termino, abro gaveta por gaveta. Mal olho para os corpos, fechando cada gaveta quando vejo que está cheia. Demora, mas encontro uma vazia. O espaço é grande o suficiente para um corpo de dois metros. O suficiente para que eu entre, me deite e depois, com certo esforço, consiga fechá-la. Apesar do cheiro sufocante, não demoro nem cinco minutos para dormir.

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