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MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br
Cachorro carniceiro (lenda do Pará)
Sexta, 22 de fevereiro de 2002, 16h19
Antes de mais nada me chamo Ismael, e narro esta história a partir do que resta em minha memória de velho. No tempo em que ela se passou, eu era ainda forte feito um potro e andava nestas madrugadas a trovar e beber pinga com o Teté, amigo meu dos tempos de guri. Teté era um índio mui gentil e educado, chegado em livros e coisas que ninguém entendia. Mas tinha bom coração, e nossas velhas mães eram comadres. O fato é que havia em nossa vila um pequeno cemitério, coisa simples, onde ricos e pobres repousavam lado a lado. E foi com grande revolta e indignação que os cidadãos receberam o ataque de um violador de sepulturas. Cinco túmulos abertos e o bandido deixava ainda a carcaça descoberta. Do tórax deixava apenas as costelas, membros e cabeça abandonados. O Teté, que era muito fresco pra essas coisas, vomitou o que tinha no bucho e mesmo os mais machos desviaram a vista e tamparam o nariz. Até sonhei com defunto. Depois destes crimes, o bandido sumiu por uns tempos, até atacar de novo. Mas nisto caiu muito doente minha mais nova, a Lili. Muito branca e fraquinha, lhe faltava ar e apetite, de moça faceira foi ficando apática e doutor nenhum conseguia dar cabo da doença. Lili só piorava, mesmo com os cuidados da mãe e os mimos de Teté – que passava dias e noites à cabeceira da pobrezinha. Teté lhe contava histórias tão bonitas que, às vezes, Lili reunia toda a sua força num sorriso. Mas em dois meses morreu – santinha. Eu e a mulher não podíamos de tanta tristeza, e quase todos na vila compareceram ao velório da pequena. Teté murchou: o beiço caído de choro, e nem ficou para o enterro. Mas naquela noite o carniceiro atacou novamente,e só de pensar no perigo de ver minha Lili comida por um fossador de defuntos, eu sentia um aperto. Então chamei os quatro machos mais velentes destes lados: o Treliça, o Natalino, o Neves, e o Alziro. Dei uns pilas a cada um e montamos tocaia no cemitério na Segunda à tardinha. O cemitério era rodeado por um mato que não acabava mais. Atrás de uma raiz, os cinco se entrincheiraram de espingarda em punho. Não demorou muito se ouviu um barulho de galhos quebrando e, do fundo do cemitério, vindo do mato escuro um vulto rápido veio se aprochegando da cova de Lili e começou a cavar. Era um bicho enorme, andava feito gente, mas a cabeça era como a de um cachorro preto. Os braços eram compridos e as garras enormes cavavam com a força de três homens. Atiramos e acertamos em cheio, mas o bicho fugiu pro mato, ferido, já meio manco. Nos próximos dias, um fedor terrível de carniça se alastrou pelas redondezas do cemitério. Por via das dúvidas, o coveiro pediu que eu fosse até lá armado para ajudar. Não encontramos nenhum túmulo aberto, ao contrário, o fedor vinha do fundo do cemitério. Entrando no matagal fechado, escutei um gemido assim muito triste, doído e prolongado, vindo de uma casinha de pau entre as árvores. Ao abrir a porta, o fedor era tamanho que meus joelhos falsearam. Deitado num canto, um homem de costas, com feridas de bala já cobertas de vermes, gania alto um lamento. Com o cano da espingarda, cutuquei-lhe. Voltou-se o rosto transfigurado de Teté. Ele agonizava, e já não falava, além daquele choro de bicho com tristeza de gente. A mãe de Teté – uma velha índia convertida – fugiu envergonhada logo depois do enterro. Junto com Teté, foi sepultado para sempre o seu segredo. Mas quando a noite é silenciosa ainda ouço aquele choro, comprido e soluçado, ressoando com o vento sobre vivos e mortos.
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