Alfredo percebeu mais uma vez o leve cheiro de podridão, e desta vez estava convencido de que vinha de alguma coisa dentro da casa. Mas não tinha tempo de procurar a origem do fedor, que devia ser de algum bicho morto debaixo das telhas. O sol estava nascendo e ele tinha que pegar o ônibus em quinze minutos.Dissolveu o Nescafé na água quente e serviu uma xícara para si e outra para a mãe, que oscilava as costas encurvadas de um lado pro outro na face oposta da mesa, sonolenta, com a boca meio aberta. Passou manteiga em uma fatia de pão e deixou na frente da velha, que estava mais doente a cada dia. Que maldita hora pra Marília ir embora, pensou Alfredo. Já nem gostava mais dela e queria mais que ela se danasse lá em Santa Catarina, ela e o desgraçado com quem ela foi morar. Agora, além de trabalhar o dia inteiro, Alfredo ainda tinha que cuidar da casa e da mãe. Antes de sair, explicou para ela que tinha arroz e feijão na geladeira, e que ela caminhasse com cuidado, porque senão podia cair de novo e não havia ninguém na casa para socorrê-la durante o dia.
Antes de ir para a oficina, foi no médico. Era um luxo, considerando a sua recente situação financeira, mas as dores
estavam fortes. Podia ser uma apendicite. O doutor esclareceu: pedras nos rins. Uma pedra no rim não era exatamente o que ele precisava agora. Tinha medo da dor intensa que seguramente ia sentir em breve.
A caminho da oficina, no ônibus, percebeu que não tinha avisado o gerente no dia anterior sobre o atraso de hoje. Chegou no trabalho aflito, pretendendo pedir uma folga por necessidade médica. Comentavam que iam rolar demissões no fim do mês, e Alfredo estava preocupado. Talvez não fosse uma boa idéia pedir a folga, podia ganhar uma bem mais longa do que pretendia. Ficou na dele, balanceando rodas e fazendo a geometria de carros que ele nunca poderia comprar. Não prestou muita atenção no serviço, não conseguia parar de pensar na pedra no rim.
Durante a viagem de ônibus de quase uma hora até em casa, sentiu-se abandonado e miserável como nunca antes. Tinha vontade de simplesmente desistir da vida. Em casa, foi tomar um banho. Não tinha fome. Fez a barba com uma gilete cega, precisava comprar lâminas novas, ir no supermercado pois a casa já não tinha nada.
Esquentou o resto de arroz e feijão para a janta. Ligou o rádio para escutar notícias. Perguntou para a mãe como foi o dia, e como de costume ela não respondeu. Às vezes achava que talvez fosse melhor a velha morrer logo, ao invés de ficar ali sozinha oscilando com a boca entreaberta durante o dia todo, no meio das moscas e do calor, sempre com o risco de cair e bater a cabeça em algum móvel ou parede.
Percebeu novamente o cheiro podre. Aquilo já estava enchendo o saco. Decidiu inspecionar o forro telhado naquela noite mesmo. Avisou para a mãe que ia sair. Ela o encarou com um olhar cheio de súplica e desespero, que fez Alfredo estremecer. Era como se ela tentasse dizer alguma coisa e não conseguisse. Alfredo se aproximou e, aterrorizado, descobriu que o fedor vinha da própria mãe. De seu hálito. "Abre a boca, mãe", pediu, e ao inspecionar as gengivas da velha viu que estavam bichadas, cheias de larvas de mosca.
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