Fazia tempo que o Dejalma vinha de olho na mulher do Caco, seu vizinho. A bem da verdade, desde que eles se mudaram para o prédio, há dez anos. Coisa que o Dejalma jamais vai esquecer foi o dia da mudança deles, quando a viu pela primeira vez. Ela acabava de se agachar diante da porta aberta, de costas para o corredor, um minúsculo vestido grudado no corpo, enquanto tentava erguer uma caixa de panelas para levar à cozinha.O tempo foi passando, o Dejalma sem coragem para abordá-la, eventuais conversas amistosas com o Caco no elevador, até que, por linhas tortas, ele viu se abrir diante de si a grande porta da esperança. Exatamente no dia em que o Caco precisou viajar para fechar uns negócios no interior, o gato da Hellô, que era o nome dela, aproveitou um descuido de ambos os lados e, sabe-se lá como, foi parar no apê do Dejalma.
A primeira idéia do Dejalma foi botar o gato embaixo do braço, bater à porta e devolvê-lo à dona. Aproveitaria a ocasião para puxar conversa e, ato contínuo, encaminharia alguma coisa de interesse mútuo, como ele gostava de dizer em situações semelhantes. Mas rapidamente mudou de idéia. E se a Hellô simplesmente pegasse o gato, agradecesse e fechasse a porta no nariz dele, sem a menor condescendência?
Melhor dar tempo ao tempo. E enquanto isso, enquanto o tempo se encarregava de acomodar as melancias na carroça, aproveitou para se precaver contra as possíveis imponderabilidades da vida: foi ao super, comprou vinho tinto, seis tipos básicos de queijo, passas (para tirar o gosto na hora de passar de um queijo para o outro), uma copa, pão com gergelim, canapés, foie gras de ganso, uma badeja de cogumelos frescos para refogar no alho e no azeite, se fosse o caso, e ração para o gato.
Entrou em casa e o bichano veio recebê-lo na porta, como um velho amigo. Foi até a mesa largar as compras e o gato correu atrás, miando. "Sentiu o cheiro de comida, o cretino!", pensou o Dejalma. Abriu o pacote de ração e serviu um prato. O gato olhou para a comida, levantou a cabeça e continuou miando, desesperado. O Dejalma entendeu a mensagem: cortou um pedaço de copa, mas ele recusou. Foi aí que ele se lembrou do foie gras. Abriu a lata e lhe deu um pouco. O gato gostou e pediu mais.
"Sabe o que é bom, o cretino!", disse ele, enquanto preparava o ambiente para o ataque à dona do animal.
Banho tomado, mesa posta, o gato comendo pâteux a seus pés, abriu a porta e tocou a campainha da vizinha. Ela veio atender, prontamente. Estava arrumada, elegante, como se fosse sair para uma festa. O Dejalma olhou-a da cabeça aos pés, percebeu a transparência do vestido contra a luz interior, engoliu em seco e perguntou:
"Você não deu falta de nada?"
Ela olhou-se rapidamente, apalpou os quadris como se procurasse algo, um olhar estranho, e o Dejalma achou sensato parar com o suspense e ir direto ao assunto.
"O seu gato fugiu para o meu apartamento!", disse, um sorriso malandro nos lábios.
"Gato!?", perguntou ela, espantada. "Não tenho gato nenhum!"
"Ué!", espantou-se o Dejalma. "E aquele gato que eu ouço miar, todas as noites, aí dentro!?"
Aí a Hellô começou a rir. Na verdade, ela teve mesmo foi um acesso de riso:
"É o Caco... quando estamos transando. Só consigo me excitar na hora em que ele mia como gato...", explicou ela. "E o Caco também...", acrescentou, fazendo um muxoxo.
"E aquele gato que está lá dentro, comendo o meu foie gras, de quem é, então!?"
"Sei lá!", respondeu a Hellô. "A única moradora que tem gato aqui no prédio é a dona Astorgilda, do 601..."
O Dejalma perdeu a pose, pediu desculpas e voltou para o apartamento. A primeira providência que lhe ocorreu foi correr com o gato para fora. Depois abriu uma garrafa de vinho e entornou a metade, numa sentada. Enquanto isso, no lado de fora, a Hellô pegava o gato no colo e o levava para dentro, carinhosa:
"Estava gostoso o foie gras, meu lindo?", perguntou ao bichano, que lambia os beiços enquanto ela lhe aplicava um sonoro beijo entra as orelhas.
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