Com um golpe fulminante, eu esmago a traquéia do Lutador Fantasma e, em meio a um gemido rouco de dor, tudo acaba. Ele não desistiu com pouca coisa, me socou os punhos, deixando-os uma massa de carne moída. Mas não larguei. Golpeou meu pescoço, apelou com uma mordida no cotovelo que o juiz fez que não viu. Mas não larguei. Nem quando me chutou os ovos eu esmoreci. Vendo-o vermelho feito um tomate, músculos e nervos se retesaram, apertando um pouco mais, e o Fantasma não agüentou. Bateu na lona desesperado e pediu água. Depois disso, no meio do zumbido de tanto levar porrada na orelha, só ouço quando o locutor grita meu nome e o público bate palmas sem muita vontade. Na saída, o Lutador Fantasma está mesmo como quem levou uma surra, a máscara de caveira rasgada pela metade. Me puxa pelo braço. Parabéns, foi uma luta limpa, diz. Até parece. Claro. Até a próxima, respondo. De banho tomado, vejo a garota do lado de fora do vestiário.
Parabéns. Não gosto de lutas, mas gostei dessa, ela diz. Mora na cidade. Viu uma luta livre pela primeira vez.
Há a rua principal, onde o circo montou a lona. O espetáculo já está acabando. A última luta é entre o Caminhoneiro e o Destruidor de Corações, o galã da companhia. Eu sou o Professor Cardã, mestre dos golpes mortais, como diz o locutor. Os outros lutadores são o Pantera Negra, o Comandante e Homem das Selvas. Grandes massas de músculos enfiadas em fantasias ridículas, como eu. Entram no vestiário comentando a luta. A garota se chama Débora, me convida para caminharmos juntos. É festa de algum santo, as pessoas andam para cima e para baixo, páram em barracas para fazer coisas como brincar de pescaria ou comprar copos de batida. Paramos diante de um homem. É só dizer onde está a bolinha, ele grita. Tem três fôrmas de empada de cabeça para baixo à sua frente. Com movimentos rápidos das mãos, levanta cada fôrma, coloca uma bola e depois tira. Como faz devagar, é fácil de ver onde está a bolinha. Explico o jogo a Débora. Depois, eu digo, ele vai esconder a bola e fazer uma trapaça, de um jeito que o sujeito sempre perde. Então, se você sabe disso, joga e ganha, ela manda. Escolho uma fôrminha, que, é lógico, está vazia.
Quando a rua acaba, não há mais nada nem ninguém para ver e nos beijamos. Você é forte, ela diz. Enfia a mão dentro da minha camisa, aperta meu peito. Eu pergunto: quer segurar meu bíceps; então faço o muque só para ela elogiar mais um pouco. Pra ser lutador, me gabo, tem que malhar muito.
Não o vejo se aproximar até que ele está a poucos metros. Tem mais ou menos a mesma idade de Débora. Grita com ela:
Vagabunda.
Débora o fuzila com os olhos. Faz que vai dizer algo, mas de repente não o desafia mais. De cabeça baixa, vai para o seu lado. Tento intervir, mas ele me manda calar. Somos casados, não se intrometa, adverte. Débora o segue. Quando já está se afastando, no entanto, volta por um instante.
Me procure amanhã, ordena baixinho.
Seu Tomé, o dono do circo, diz que vamos partir na hora do almoço, então engulo o café e vou procurar Débora. Se o marido perguntar, digo que fui agradecer a hospitalidade. No boteco, peço uma cachaça e pergunto por Débora. Mas cada vez que falo nela, as pessoas me olham espantadas. Dou o nome e a descrição do marido. É quase uma menina, ri de tudo, eu digo ao dono do bar. Ele me responde: o senhor espera aí que já vem uma pessoa que pode lhe ajudar. Termino a cachaça quando chega a velha. Me pede para contar tudo de novo. E depois para acompanhá-la à sua casa. Serve café e bolo de milho meio velho.
Me dá uma foto de Débora. Diz:
Essa é a minha filha. Morreu há mais de vinte anos junto com o marido. Acidente de carro.
Mais uma foto. O homem que levou Débora embora, o marido.
Foi bem ali no fim da rua, a mulher continua. Num dia de chuva, os dois voltavam para casa e o carro perdeu a direção. Se espatifou na árvore grande lá no fim. Ninguém nunca tinha morrido de acidente aqui antes. E nem depois.
Na sala, há muitas fotos antigas. Débora era muito animada, a mãe me conta. Continua falando, mas as palavras começam a parecer sem nexo. Não mais frases inteiras. Outras... pessoas... padre... assombração... Ouço-a cada vez menos e quando me pega pela mão e pede para ajoelhar e rezar com ela pela alma da filha, entendo com dificuldade, mas aceito com alegria. No meio da oração, choro feito uma criança.
Alexandre Rodrigues escreve às quintas-feiras no Popular.
Leia a crônica anterior
Veja as notícias »