"O 2,4 - dinitrofenol (DNP) é um ácido lipofílico fraco que prontamente passa através da membrana no seu estado neutro protonado. (...) o desacoplamento, portanto, permite que o transporte de elétrons proceda livremente, mesmo qdo. a síntese de ATP está inibida. Consequentemente, na década de 20, o DNP foi usado como uma "pílula dietética", uma prática eficiente na indução da perda de peso, mas que, por outro lado, apresentava efeitos colaterais fatais. Sob condições fisiológicas, a dissipação de um gradiente eletroquímico de H+, produzida pelo transporte de elétrons desacoplada da síntese de ATP, produz calor." In: Voet, Voet e Prat; Fundamentos de Bioquímica.
Camélia estava radiante em seu vestido branco. Do decote brotavam rendas que decoravam os seios fartos. Na cintura, uma fita de cetim apertava seu corpo roliço. Cantou maravilhosamente, e, a cada intervalo, os aplausos eram para ela. Mas a cantora tinha os olhos fixos na primeira fila. Camilo, o jovem filho do vizinho, fora vê-la. Ele aplaudia, e em seus olhos brilhavam gordas lágrimas.
Camilo sempre fora distraído e brincalhão, de modo que as tais lágrimas pareciam não ter outra explicação. No camarim, os dois beberam vinho, riram. Camélia recebia os parabéns. Desde que começara sua carreira no canto lírico, esta era a primeira vez que Camilo ia vê-la. No caminho para casa, os dois quase não falaram. Camélia não encontrava as palavras certas, e apertava os dentes arredondados. Camilo era um rapaz educado, mantinha os olhos fixos na estrada. A moça sentia um calor infinito, e, com seus dedos úmidos ajeitou o decote. "Eu simplesmente adoro este vestido, você não? Não te parece um vestido de noiva?"
Camilo respondeu sem olhar. "É verdade, um belo vestido. No entanto, se me permite, creio que a senhorita devesse evitar este tipo de roupa. Tecidos muito justos e claros não lhe favorecem".
Ela sorriu sem jeito e voltou a calar-se. Logo, a carruagem parou em frente à casa da moça. Ao entrar, ouviu o galope distante dos cavalos, Camilo se afastava novamente.
Camélia acendeu uma vela e tirou vestido, observando seu corpo no espelho. As formas arredondadas, a pele cândida e macia. Chegou bem perto de seu rosto, rosado de choro, sardas, bochechas, nariz. Camilo a conhecia bem, não gostava dela. Camélia abriu uma gaveta, e tirou de lá uma pilha de revistas. Nua sobre sua cama, ela adormeceu com os retratos. Rostos finos, corpos langorosos, semblantes de infinita fragilidade e palidez.
No sonho, ela corria sem sair do lugar. Estava num anúncio de moda. Os flashes ofuscavam sua visão, mas ela sabia quem estava lá. Assistindo de uma cadeira na primeira fila, Camilo e seus olhos molhados sem explicação. Ao acordar, ela não lembrava do sonho, mas sentia ainda na pele a sensação daqueles olhos negros e calados.
Na semana seguinte, Camélia iniciou seu tratamento com as pílulas prescritas pelo Doutor Cornélio, que garantiu resultados imediatos. De fato, em três dias, já se podia notar uma certa folga nas roupas da moça. Não sentia fome, nem sede, nem mal-estar.
Ao fim de três semanas, Camélia já não cantava. Sentia-se fraca,o peito constrito em uma concavidade amorfa. Sob os olhos azuis pendiam olheiras roxas, e as formas de seu corpo - outrora farto e redondo - lembravam um anúncio de moda. A fraqueza a mantinha confinada em casa, a face rosada desbotara para um marfim pálido. Mesmo ao tocar piano - uma das únicas atividades que a languidez ainda lhe permitia - Camélia parecia trêmula e hesitante. Algo nela permanecera, da noite do concerto, uma inquietação mansa e sorrateira. Que eram afinal aquelas lágrimas nos olhos de Camilo? As notas vinham atrasadas, as teclas sopravam intenções, Camélia já não ouvia a música. Apenas um arfar interno, o sufocar de suas células famintas. E, embalada pelo compasso lento de sua respiração, dormiu para nunca mais. Nos lábios frios, enegrecidos pelo veneno, Camélia segurava ainda o nome de Camilo.
No caixão branco, flores, entalhes e rococós: Camélia parecia outra. Os parentes e amigos sequer reconheciam a rechonchuda cantora. Do órgão, no fundo da capela, vinha um lamento. Camilo chegou de capa negra e distribuiu condolências aos presentes. Mas ao aproximar-se do esquife, foi arrebatado. Viu Camélia, os olhos fechados e olheiras roxas, o peito frágil descoberto pelo decote do vestido branco, já folgado. Uma dor lancinante rasgou-lhe a carne do espírito. Sentia-se viúvo, vilão - demente. Morta, Camélia era para ele a mais sublime das noivas. Nunca a tinha visto assim. Camilo curvou-se sobre a cantora, trêmulo de paixão. E ao toque nupcial dos lábios amantes, a última nota do réquiem ecoou para as almas.
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