Laura está na cozinha, prestes a colocar um pernil no forno. São nove e quarenta da manhã e o dia não está nem frio nem quente. O céu está azul e sem nuvens. O pernil foi temperado no dia anterior. Assim que abre o forno, Laura escuta um ruído na janela às suas costas. Olha para trás e enxerga apenas o céu e alguns prédios. Está quase voltando para o forno quando um pequeno vulto cruza muito veloz pelo espaço emoldurado pela janela. Menos de um minuto depois, outro. E mais outro. O último vulto passa miando.Laura se aproxima da janela para ver melhor o que está acontecendo e quase é atingida por mais um dos vultos que caem. São gatos. Caem em intervalos regulares e vão se empilhando no piso da garagem do edifício. Alguns miam, mas a maioria desaba em silêncio. Nenhum vizinho parece ter percebido o que está acontecendo, nem o porteiro apareceu na garagem. Laura enfia a cabeça no espaço da janela e olha para cima, tentando enxergar de onde vêm os gatos. Novamente quase recebe um deles direto na cabeça. Calcula então o tempo entre cada queda de gato e olha rápido para cima. É impossível saber de onde estão caindo. Tanto pode ser do último andar do edifício quanto do próprio céu. Procura por algum avião. Nada. São apenas gatos caindo.
Laura dá um salto para trás quando a primeira vaca passa pela janela emitindo um mugido profundo. Tentar descobrir de onde os animais estão caindo se torna de repente uma tarefa mais perigosa. Laura se limita a ficar encostada na parede ao lado da janela, de onde pode ver a pilha de gatos e vacas crescendo sem parar. São vacas de todo tipo e coloração, e para sua surpresa não explodem em sangue e tripas quando chegam ao solo. Vão apenas se acumulando uma sobre a outra, imóveis e definitivamente mortas. Algumas caem mugindo, outras involuntariamente fazem barulho com o badalar de seus sinos, mas a maioria desaba em silêncio. Assim como os gatos, caem sabe-se lá de onde e formam uma pilha no piso da garagem.
Laura já está com o celular na mão ligando para a polícia quando enxerga um vulto diferente passando pela janela. Parece algo maior que os gatos e menor que as vacas, só que mais colorido. Aproxima-se novamente da janela e tenta discernir o que é aquele ponto esverdeado em cima das vacas, mas não consegue. Quando mais um dos novos vultos risca sua frente, começa a entender. São velhas. Velhas caindo do céu. Senhoras idosas usando vestidos coloridos. Caem em silêncio, sem gritar ou se debater. Uma delas cai mais lentamente, com uma sombrinha aberta. Sorri para Laura, que quase responde com um aceno. A pilha cresce cada vez mais, já atingindo quase a altura do segundo andar do edifício. Mesmo assim, as velhas não páram de cair. Depois das de vestidos coloridos começam a surgir algumas com vestidos estampados e até algumas usando preto da cabeça aos pés. Laura cruza os braços e continua a observar o crescimento da piha.
Laura depois de uns vinte e tantos minutos começa a achar tudo aquilo muito chato, antes eram gatos, depois foram vacas e agora são velhas, nunca páram de cair e ficam se empilhando no piso da garagem, mas e daí, que se danem então, tudo que sobe tem que descer, cada um faz o que quiser da vida, não sou desocupada para perder tempo olhando isso, essa gente só quer chamar a atenção, e volta à sua tarefa de colocar o pernil no forno.
Daniel Pellizari escreve às quartas-feiras no Popular
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