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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Matinta Pereira

Sexta, 15 de março de 2002, 15h32



É engraçado, me recordo do dia em que o caboclo Onofre, esperando uma encomenda de bolo, me falou sobre a Matinta Pereira. Para mim, era uma questão de honra entender aquele enigma que parecia normal para todos. E de todos os adultos, Onofre foi o único respondeu minha pergunta sem rodeios. E as palavras agora assumem um outro significado. A tardinha ia caindo, o caboclo coçava o queixo repetidas vezes enquanto me explicava, com uma expressão de segredo.

- Não é bicho não, Lazinha. É gente. É uma visagem da noite. Ela sai voando por aí, assobiando feito um apito. Quando o apito é perto, no ouvido da gente, é porque ela está longe. Mas se o apito vem de longe, é porque ela está logo atrás. Tem um rabo comprido, feito chicote, e chicotada de Matinta Pereira não se cura nem com reza. Ela gosta muito de tabaco, mas...

Onofre se benzeu. Vó Góia chegou na porta e entregou os bolos, enrolados em panos de prato. Onofre saiu correndo e sumiu no caminho de terra. Vó Góia ainda disse algo sobre os loucos, que não se pode acreditar no que eles dizem.

Minha tia Elisa era a única solteira de cinco irmãs. Seu Matias, fazendeiro de bom dinheiro, deu para buscar a moça no tanque quase todo santo dia, no lombo do cavalo. Eu ouvia de longe o galope e corria para ajudar com a trouxa de roupas molhadas. Seu Matias entrava para tomar um café com bolo de milho enquanto eu ajudava tia Elisa com a trouxa de roupa suja.

A corda atravessava em zigue zague uma distância de uns cem metros: eu segurava a lata de prendedores, e tia Elisa ia pendurando uma a uma. A corda era uma grande festa onde os convidados, de ponta-cabeça, trocavam comentários silenciosos sobre os transeuntes. E na dança do vento, os gibões se moviam sisudos, enquanto os vestidos das moças sacudiam frenéticos, tentando fugir. Tia Elisa espiava Seu Matias por entre as roupas, ele ficava quase sempre na varanda, bebia o café, comia o bolo, e conversava em voz baixa com Vó Góia. Eu não ouvia uma palavra do que os dois diziam, presa à minha função de suporte móvel, mas sabia com certeza do que falavam. Vó Góia precisava acertar um casamento bom pra tia Elisa, porque as outras já tinham se perdido.

Vovó não se acertava com o homem: queria um cercado de terra pra si, com um açude e uma casinha. Seu Matias se defendia:

- Mas não há necessidade disso, Dona Glória. Se ela for mesmo boazinha, aí senhora fica morando lá na fazenda e garanto que lá não falta nada. A não ser que eu possa fazer um teste. Aí a coisa muda de figura, tenho uma garantia, uma certeza. A senhora sabe que eu quero muito bem a sua filha, Dona Glória.

Vó Góia contraiu os lábios muito enrugados, cuspindo um pedaço de tabaco, e tirou a xícara de café da mão do homem.

Acontece que uma noite tia Elisa chegou tarde em casa, enlameada e chorando. Tinha perdido a trouxa de roupa. Para mim, que ainda não estava na idade das travessuras mais graves, este já era um motivo mais do que suficiente para chorar daquele jeito. Mas o choro de tia Elisa não tinha fim, e até de manhã cedo ela ainda soluçava. Eu também não dormi, com um arrepio estranho e o vento sibilante da madrugada no Sertão. Na mesma manhã, encontraram o Seu Matias rente à cerca, lanhado de cima a baixo. As feridas eram serpentes enroscadas em seus membros, deixando um rastro de fogo. Seu Matias repetia apenas duas palavras: "Matinta Pereira!", e seus olhos se reviravam de pavor e delírio.

Seu Matias perdeu os sentidos no segundo dia, e a língua do povo se soltou. Como todo homem endinheirado, Seu Matias tinha muitos inimigos, e quando ou ou outro destes se encostava à varanda de casa para tomar um café esperando as roupas secarem, Vó Góia sacudia a cabeça branca, dizendo:

- É...Às vezes as pessoas ganham o que merecem.

Uma semana depois, seu Matias morreu, as feridas efervescentes de vermes, repetindo as mesmas palavras. Minha mão disse que era bem feito, por ter feito mal à tia Elisa. Eu não entendia, e não poderia mesmo. Mas que mal Seu Matias podia ter feito à tia Elisa? Um moço tão educado, eu pensava. E todos os adultos se conversavam e comemoravam a morte daquele homem tão bonito e gentil, como se tudo fosse normal. Mas Onofre era diferente de todos.

- Que bicho é a Matinta Pereira, Onofre?

Isso já faz tanto tempo, e se me lembro agora deste causo da morte do Seu Matias e da história do Onofre é porque minha Vó Góia já não vive entre nós, e ontem, arrumando em um caixote seus poucos trapos e santinhos, encontrei, junto com a lata de tabaco, um livro preto de rezas, com uma estrela prateada na frente. Comecei a ler o livro, mas caí no sono. No sonho, eu tinha um rabo comprido de couro e voava por toda a região, com as asas muito abertas. No caminho de chão batido, os homens se benziam e largavam rolos de tabaco pela estrada. Eu esperava que eles fossem embora, e recolhia os rolos apressadamente.

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