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    EMILIANO URBIM
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Anos

Segunda, 01 de abril de 2002, 16h33



"(...) o ruim do mundo eu ainda não tinha visto, mas faltava pouco, muito pouco para que isto acontecesse".
Do conto Madona, de Rubem Fonseca

Tiros de canhões ecoam por toda a Grã-Bretanha (inclui-se aí o estreito de Gibraltar, possivelmente as Ilhas Malvinas). Um ritual bélico, fúnebre e barulhento em homenagem à rainha-mãe, Elizabeth, morta no último sábado com 101 anos.

Em Hollywood, em Beverly Hills, sei lá onde, é enterrado o corpo do cineasta-pai Billy Wilder. Quando nasceu se chamava Samuel e quando morreu tinha 95 anos. Suas ex-mulheres choram, os filhos choram, os fotógrafos trabalham.

Corta para mim e um amigo meu hipotético (os piores, já escrevia o Verissimo) em uma pizzaria da avenida Nilo Peçanha, Zona Norte-com-ressalvas de Porto Alegre, tarde de nuvens carregadas e temperatura amena. Eu bebo uma água sem gás, sem gelo e sem limão e ele uma long-neck. Logo vai chover.

"Tu viu que morreu a rainha-mãe da Inglaterra?" Tomo um gole. "E o Billy Wilder também?"

"Sim, sim, eu li no começo do texto", responde ele sorrindo.

"É bom tu te comportar como o personagem alienado que sempre foi. Onde já se viu?"

"Ok, ok, então eu vi na TV", resmunga o meu amigo. "O Wilder inclusive eu achei que já estivesse morto há tempos".

"Não gostei de saber dessas mortes. Sei lá, essa rainha-mãe, por exemplo, parecia que ela ia viver pra sempre. Deixa a gente meio sem noção..."

"... cheio de dúvidas, questionando a própria sexualidade. Bem putinho mesmo".

"Me chamou de putinho, putinho?"

"Por quê? O putinho não ouviu?"

"Pergunta pra tua mãe se eu sou putinho, putinho!"

"Mãe não".

Após a pausa dramática em virtude da relevância das figura materna em nossa psiquê pós-adolescente face ao mundo polifacético, prosseguimos.

"Eu estava tentando falar algo sério. Eles viveram tanto, fizeram tanta coisa... e a gente, cara, a gente fez o quê?"

"A gente é jovem ainda". Ele sorri de novo.

"Tenho medo do futuro. Bailar na curva. Se perder por aí".

Nova pausa dramática para a inevitabilidade da passagem do tempo e um leve ar de melancolia devido à nossa insignificância em relação à eternidade do universo.

"E tem a Copa do Mundo", continuo, "esse Kaká idiota".

Corta para Kaká fazendo dois gols, um pelo São Paulo e outro pela Seleção Brasileira. Kaká tem 19 anos, joga do São Paulo, time paulistano, tricolor e metido a besta, e está nos planos do técnico Felipão para a Copa do Mundo de 2002. Volta para eu e meu amigo hipotético no bar da Nilo. Trovões, relâmpagos e raios, o leitor escolhe a ordem.

"Tu fica deprimido porque o Kaká tem 19 anos e vai pra Copa, e tu tem 23 e vai pra casa?", joga ele com palavras.

"É. Mais ou menos".

"Putinho".

"Te olha no espelho, putinho".

"Como, contigo sempre na minha frente, putinho?"

"Sonhando acordado comigo, putinho?"

"Vamos embora que logo vai começar a chover. Li lá no começo".

"O Rubem Fonseca escreveu que 'o ruim do mundo...' "

"Tu já usou isso lá em cima".

"Maldita metalinguagem!"

Pausa para uma reflexão sobre nossa total imersão na era da
reprodutibilidade técnica e textual. Chove chuva, chove sem parar.

"Um brinde aos nossos 101 anos".

"Aos nossos".

Leia a crônica anterior

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