Na primeira manhã de frio do ano, Ronaldo abriu a janela do quarto para dar uma olhada no tempo e viu uma coisa estranha. Um ser vivo nadava dentro da piscina nos fundos de sua casa. Parecia um ratão. Depois de se vestir e lavar o rosto, ele saiu para o pátio para inspecionar o animal mais de perto. Não parecia haver nada dentro da água azul e cristalina, mas uns ruídos líquidos denunciaram a presença do bicho bem debaixo de seus pés, tentando inutilmente escalar a borda da piscina. Era grande demais para ser um rato, pensou Ronaldo. Era um gambá, ou mais provavelmente um filhote de gambá. Devia ter caído na água durante a noite e agora não conseguia sair. Exausto depois de infrutíferas tentativas de escalar a borda, o gambazinho voltou a flutuar no meio da piscina, braçando a água nervosamente com suas pequenas patas, e agitando a cauda prênsil num nado desengonçado.O pai já o estava chamando para saírem para o colégio, mas Ronaldo pegou a peneira da piscina e foi atrás do gambá. Era cruel deixá-lo ali. Na parte mais profunda, Ronaldo mergulhou a peneira na superfície da água, próxima ao desesperado marsupial. O animal apoiou-se na peneira e agarrou-se nela, exibindo suas garras afiadas. Deu um guincho agudo e deixou à mostra seus dezoito dentes pontiagudos. Assustado com a possibilidade do gambá subir pela haste da peneira, Ronaldo o catapultou por cima da cerca do pátio com um movimento rápido e enérgico. O bicho voou pelo ar, guinchando e agitando as patas, até chocar-se contra os arbustos do terreno baldio do outro lado. A caminho da escola, Ronaldo ficou pensando se tinha matado o pobre gambá.
Na manhã seguinte, o pai de Ronaldo gritou do pátio para avisar que havia um gambá na água da piscina. Ronaldo correu até lá. Era o mesmo gambá. Que bicho idiota, resmungou. Pegou a peneira e, mais uma vez, o resgatou, dessa vez tomando o cuidado de jogá-lo vagarosamente por cima da cerca de arame, sobre uns montes de capim. Ainda viu o atordoado animalzinho correr entre uns arbustos, até desaparecer. Naquele dia, antes de dormir, foi ao pátio com uma lanterna e inspecionou a piscina, que estava limpa. Ficou meia hora sentado numa cadeira de plástico, no vento frio, mas logo sentiu-se ridículo e se meteu na cama.
No outro dia, encontrou o gambazinho dentro d'água novamente. O que aquele rato hipetrofiado queria? Será que não aprenderia nunca? Ronaldo observou atentamente o gambá nadar. Parecia exausto e apavorado. Não fazia sentido que ele voltasse a cair na piscina gelada e cheia de cloro dia após dia. Resignado, tirou ele da água mais uma vez.
Toda manhã, lá estava o gambá nadando na água, debatendo-se loucamente para sair da piscina. O bicho ia crescendo a cada semana, e enquanto isso Ronaldo lia tudo que podia sobre gambás. Falou com professores, mandou e-mails a biológos, mas não conseguiu encontrar uma razão para a insistência do animal em mergulhar na sua piscina.
Alguns meses depois, seu colega Onofre dormiu na sua casa num sábado. Na manhã de domingo, Ronaldo o levou à piscina, garantindo que encontrariam o gambá na água. De fato, lá estava ele. Onofre se ofereceu para tirar o bichinho da água, mas ao invés de jogá-lo sobre a cerca, largou-o no pátio da casa de Ronaldo. O gambá correu loucamente pelo gramado. Ronaldo só pôde rir da situação, mas Onofre correu atrás do animal em fuga. Conseguiu encurralar a presa num canto do muro, e diante do olhar horrorizado de Ronaldo, deu um chute certeiro e violento no gambá, que voou através do pátio até se espatifar contra a parede da casa do vizinho, numa massa sangrenta. Quando o corpo do gambá estava no meio de sua trajetória, Ronaldo percebeu que dele eram expelidos um monte de pequenos gambazinhos, com cerca de dois centímetros de comprimento. Ronaldo deu um berro e começou a esmurrar Onofre na cara. Aos prantos, contemplou a carcaça da mamãe-gambá, e depois catou um a um os minúsculos filhotes expelidos prematuramente da bolsa marsupial, com seu aspecto fetal, rosados e frágeis. Mortos.
Ronaldo não foi à escola. Passou o dia chateado, vendo televisão. À tarde, foi cagar e começou a chorar sentado na patente. Já tinha se acostumado a resgatar o gambá todas as manhãs, e ele parecia até estar esperando que Ronaldo chegasse e o retirasse da água gelada. Por que algo tão horrível foi acontecer?
Na manhã de segunda-feira, Ronaldo se vestiu e caminhou automaticamente em direção à piscina. Só no meio do caminho lembrou da atrocidade do dia anterior. Mesmo assim, foi dar uma olhada na água. Espantado, encontrou mais ou menos uma dúzia de minúsculos gambazinhos lutando bravamente para não se afogarem. Chorando e sorrindo, Ronaldo pegou a peneira e salvou um a um. Jogou-os por cima da cerca e olhou enquanto corriam pela relva.
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