Certa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, o professor Miguel Esteves Cardoso deu por si na rua transformado em um mendigo. Estava deitado de costas em uma sarjeta, tão imundo que parecia incrustado de sujeira. Ao levantar um pouco a cabeça, percebeu as pernas nuas e cinzentas, com a genitália descoberta. Os pêlos pubianos, miseravelmente abundantes, agitavam-se desamparadamente perante os seus olhos. Que me aconteceu?, pensou. Não era nenhum sonho. A sarjeta era uma vulgar sarjeta urbana, em um beco bastante úmido, em meio a edifícios que lhe pareciam bastante familiares. Virou a cabeça e enxergou, a alguns passos, desembrulhados e em desordem, seus poucos pertences. Ergueu-se com dificuldade e caminhou a passos ímpares até a montoeira de panos, onde conseguiu divisar uma calça. Vestiu-a rapidamente de modo a tornar-se mais apresentável.
Miguel desviou então a vista para uma fresta entre os edifícios que formavam o beco. O céu azul, plano e sem nuvens o fez sentir-se bastante melancólico. Quem sabe se dormisse mais um pouco e esquecesse todo este absurdo?, considerou. Mas era impossível, porque naquele exato momento o beco começava a ser metodicamente varrido por um grupo de três garis, que o olhavam sem compaixão. Com a mesma dificuldade de antes, ordenou às pernas que se movessem em direção à avenida principal.
Quando a claridade bateu em seus olhos e o sol atingiu todo seu corpo, teve consciência do próprio fedor. Tentou controlar a vergonha, que só aumentava à medida em que os passantes o olhavam com um misto de repulsa e ódio. Segurou com mais força as calças, para que não caíssem, e tropeçou sem rumo no paralelo dos edifícios da avenida. Na primeira esquina encontrou uma carrocinha de cachorro-quente, e o cheiro que lhe entrou pelos poros aguçou as pontadas que vinha sentido no estômago. Fome.
Trincando os dentes, enfiou as mãos nos bolsos da calça, buscando dinheiro. Não tinha a habilidade necessária para fazer isso ao mesmo tempo em que a segurava para que se mantivesse no lugar. O resultado veio rápido, e antes que se desse conta já estava novamente nu da cintura para baixo. Ouviu alguns gritos vindos da carrocinha, e por instinto se afastou no passo mais rápido que conseguiu.
Sentou-se encostado em um edifício, do lado oposto ao da carrocinha. As calças ainda estavam em seu pé, mas não tinha forças para levantá-las. Não via mais sentido no pudor, e não mais importava que estivesse nu em meio à avenida. Os transeuntes não mais o olhavam com nojo, mas simplesmente ignoravam sua existência. Percebeu que aos poucos estava começando a deixar de compreender o que falavam, e suas vozes se misturavam em um turbilhão amorfo cuja altura e confusão crescia minuto a minuto. Ao tentar proferir alguma palavra, obteve como resultado apenas o grunhido de uma voz que não parecia a sua.
Sentiu ainda mais vergonha, e quase sucumbiu ao ímpeto de correr em direção ao beco mais próximo e ali se esconder sob o lixo, para nunca mais ser visto por olhos humanos até que morresse. Balançou a cabeça e tapou os ouvidos para proteger os tímpanos do ruído crescente das vozes ao seu redor, que cada vez mais faziam menos sentido. Reuniu o que ainda havia de humanidade dentro de si, estendeu os dois braços com as palmas para cima e, tremendo, começou a olhar ao seu redor em busca de algo ou alguém que lhe fosse familiar.
Caiu com os olhos em cima de uma placa na porta de um boteco ao lado do edifício em cuja parede se encostava. Havia algo escrito em sua superfície, mas não conseguiu ler. Sua visão também havia piorado, e pouco conseguia enxergar do mundo à sua volta além de manchas cinzentas passando rapidamente. Levantou-se e caminhou curvado até a placa, da qual se aproximou até quase encostar o nariz. A inscrição, um logotipo, estava gasta pelo tempo. Franziu o cenho e leu devagar a caligrafia antiga, balbuciando as sílabas. Co. Ca. Coca. Fechou o olho esquerdo e coçou a barba. Co. La. Cola. Coca-cola. Não lembrava mais do gosto da bebida, mas ainda podia buscar os slogans na memória. Coca-cola é isso aí. Beba coca-cola. Curta coca-cola. Quando o balconista do boteco veio lhe afugentar, já tinha compreendido a mensagem. Afastou-se sorrindo, a coluna já quase novamente ereta. Tentou um sorriso banguela. Coca-cola, repetiu. Coca-cola. Sentiu um comichão nas veias e as batidas do coração quase lhe bloquearem a garganta. Começou a gargalhar.
De um golpe virou a cabeça para o outro lado da rua, onde em meio às sombras acinzentadas identificou o brilho da carrocinha de cachorro-quente. Começou a correr até ela com toda a destreza que ainda possuía, e ao alcançar a exata metade da distância foi atropelado por um dos carros que cruzava a avenida. Deitado no chão, olhou lento para o brilho da carrocinha e usou as mãos para se arrastar até ela. Ainda gargalhava, e as bolhas de sangue que lhe saíam da boca se acumulavam até formar uma espuma avermelhada. Parou de rastejar quando agarrou com força os pés do vendedor de cachorro-quente. Os ruídos cresceram em confusão e volume, as sombras aumentaram sua indefinição, a dor passou dos limites do suportável, e Maicon fechou os olhos.