"Era a paixão dele/ contra o meu cansaço""Coisa engraçada", diz a mulher. "Existem músicas que parecem feitas pra gente. Era a paixão dele... contra o meu cansaço..."
Atrás do balcão, o homem organiza os copos recém-lavados ao lado da pia. Súbito, se vira para ela. Seus olhos também são fundos, como se através deles alguém lhe tivesse chupado também uma parte da alma sofrida. Faz que vai dizer alguma coisa mas não diz. Talvez prefira o silêncio a algo que não valha mais a pena ser dito.
A mulher, com cara de sono, como num bocejo, volta a abrir a boca para cantarolar os versos da música que sai do rádio velho, quase esquartejado, sobre o balcão.
"Quando ele me olha eu fico gelada/ Eu tenho que dar uma paga pesada,/ pela caridade, pela moradia/ e a vida decente de uma alvenaria,/ de não precisar dormir durante o dia...”
O homem puxa do ombro o pano de algodão encardido e volta novamente as costas para ela.
É cedo, o bar ainda está vazio e os copos que ele começa a enxugar estavam sujos desde a noite anterior. Mas ela logo o interrompe, querendo tomar um conhaque. Ele larga um copo sobre o balcão e despeja duas doses. Os olhos deles se cruzam e pela segunda vez o homem ameaça dizer alguma coisa. Mas pela segunda vez também prefere o silêncio a algo que talvez não valha mais a pena ser dito.
A mulher seca o copo com um único gole e pede outra dose.
"Essa música até parece que foi feita mesmo pra mim", ela insiste. "Pensando bem, não deixa de ser um sinal de que não estou só no mundo".
O homem abre a geladeira e de dentro retira um pequeno bife. Coloca óleo sobre a chapa aquecida, espera um pouco até o calor ficar no ponto e joga-o em cima. Ela observa todos os movimentos dele e não demora o cheiro do bife se espalha pelo bar, aliviando um pouco o odor de fumo e de bebida azeda impregnado nas paredes, mesas e cadeiras.
A música que a mulher acredita que poderia ter sido feita para ela já quase chega ao fim:
"...ele se escorrega de mim saciado/ e eu sinto uma angústia, um pavor dobrado/ quando ele me toca uma segunda vez..."
O homem quebra um ovo sobre o molho que se soltou da carne, enquanto a mulher toma mais um gole e chama-o pelo nome. Ele vira-se e seu olhar é mais de resignação que de expectativa - é um olhar de quem está pouco ligando para um sofrimento a mais ou um desgosto a menos na vida.
"Preciso de um favor seu... A polícia hoje talvez lhe faça perguntas sobre mim..."
O homem mira o rosto dela como se, subitamente, alguém lhe soprasse pelos olhos molhados uma parte da alma perdida.
"Diga que dormi aqui no bar e que fizemos amor a noite inteira", ela pede.
Ele sorri o primeiro sorriso desde que ela ali chegou. Sorri um sorriso como há muito, desde que a conheceu, ele não imaginava possível em seu próprio rosto. Então coloca o bife fumegante sobre o prato, o ovo em cima, e larga-os na frente dela, junto com os talheres:
"Agora coma um pouco. E o resto deixa comigo..."
Ela dá um suspiro, olha-o com carinho e repete o último verso da música que acabou de tocar:
"Talvez eu não valha uma briga num dancing..."
Ela come o bife e senta-se uma mesa ao fundo do bar. Fica ali até o meio da manhã, a observar o trabalho dele atrás do balcão, servindo os primeiros fregueses da manhã. Perto do meio dia chega a polícia. Quando a vêem no bar, logo tomam a direção de onde ela está. O homem tira o guarda-pó engraxado e caminha atrás, quase correndo. Antes que os policiais façam a primeira pergunta a ela, ele lhes corta a frente e diz, estendendo os pulsos para que lhe coloquem as algemas.
"Fui eu que matei!"
*Fátima Guedes
Tailor Diniz escreve às sextas-feiras no Popular
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