Eu estava com a coluna pronta - na cabeça, claro, "antecedência: não trabalhamos". Ia ser sobre um velho que se achava dono do bairro Jardim Botânico (tem um em Porto Alegre), ou sobre um guri que escondia seus segredos da mãe, eu não estava bem certo, mas igual, ia ser um produto daquela equação mágica de 1/3 da minha vida, 1/3 da vida dos outros e 1/3 de imaginação, podendo as proporções variarem conforme a necessidade. Até que ontem, no meio da madrugada, me explode essa bomba na mão. Tá bom, tá bom, pode não ser uma bomba, mas pelo menos chama atenção pelos estalos, como os dos Traques Guri (1). Era noite friazinha de domingo em Porto Alegre, coisa de uns quinze graus, o suficiente para que eu estivesse de calça de abrigo e moletom embaixo das cobertas. Saí sexta e sábado, o fuso bem desregulado, duas da manhã nada do sono vir. Peguei para ler um romance policial que estava no final, O Labirinto Grego, de Manuel Vazquez Montalbán. Terminei (2), mas nada de sono. Peguei então para ler El Atroz Encanto de Ser Argentinos, de Marcos Aguinis. Meu espanhol anda meio enferrujado, então me muni de café preto e dicionário e fui tocando. Sei que o relato parece bem bucólico até agora, mas logo o enredo engrossa (3).
O livro é do final do ano passado, e até onde eu fui é um ensaio revendo todas as grandes cagadas da história argentina recente. Mas isso não interessa. Interessa é que lá pelas tantas ele começa a enumerar citações de gente que visitou a Argentina e não gostou, entre elas a do comediante mexicano Cantinflas (1911-1993), que disse: "La Argentina está compuesta por millones de habitantes que quieren hundirla, pero no lo logran." A Argentina tinha muita gente disposta a fazer alguma coisa com ela e não conseguia. Que diabo de coisa era aquela, "hundirla"?
Para isso o dicionário estava ali, do lado da minha perna esquerda. Pag. 653, hundir, verbo, vários significados, todos com uma idéia geral de arruinar, fazer fracassar, perder o ânimo. Cantinflas achava que os argentinos queriam acabar com a argentina. Tá, tudo tri, dúvida solucionada. Quando ia fechando o livro, chamou a atenção do meu olho direito a frase de exemplo do significado numero 3, que era "derrotar ou vencer": "Me hunde la moral que nadie me publique lo que escribo."
Parei na hora. Minto: li, achei engraçado, fechei o dicionário, pus de lado e só quando peguei o outro livro me dei conta. Que diabo de exemplo dicionarístico era aquele?(4) Não é o tipo de coisa que se encontra em dicionários, ainda mais dicionários didáticos, como era o caso daquele. Por que não uma frase sobre uma situação mais comum? Muito mais coisa nos põe para baixo do que não ter suas obras publicadas, até porque uma ínfima parcela da humanidade tem esse problema. Engenheiros, motoristas, torneiros mecânicos, ortodontistas, jogadores de futebol, chefs, guitarristas, marqueteiros: esse pessoal não fica fitando o horizonte deprimido porque ninguém publica o que eles escrevem. Engenheiros, motoristas não... dicionaristas talvez!
Convencido de que aquilo era uma mensagem cifrada, corri para o comecinho do volume. Eram três da madrugada e eu queria nomes, nomes! A editora era de Madrid. Imagine só, um escritor frustrado na capital da Espanha, dividindo sua agonia com o mundo! Comigo! Lá em cima, uma mulher cujo nome era uma sina: Concepción Maldonado Gonzales havia concebido o projeto editorial e a direção, com assessoramento e revisão de Humberto Hernandéz Hernandéz, Hernandéz de pai e mãe. E depois deles o dilúvio. Eram mais 19 na equipe de redação, 14 mulheres e 5 homens. Seria coisa de homem ou mulher aquele lamento no meio do dicionário? Estatisticamente, mulher, 73,69% de chance - não resisti e peguei a calculadora.
A mente insone rapidamente imaginou uma guria com a cara da Penélope Cruz e com outra igual a Maribel Verdú numa sala, compenetradas, trabalhando. Maribel fala: "Estamos no meio da letra H, não é? Na sílaba 'Hu', se não me engano. O verbo 'hundir'." Penélope diz secamente: "Recusaram de novo meu romance.", e desata a chorar. "Não sei mais o que fazer. Meu sonho é ser escritora e parece que nenhuma das editoras da Espanha se interessa por meu trabalho." Maribel põe a mão em seu queixo, cruza seu olhar com o dela e candidamente diz: "Não chores assim. Logo que terminarmos esse maldito dicionário tu terás mais tempo livre, vais poder reescrever o que já fizeste, visitar tudo que é editora, quiçá até fazer coisas novas e melhores." Penélope, com os olhos cheios d'água, retruca: "Isso é otimismo demais para mim. Me sinto uma tola." Maribel então beija apaixonadamente Penélope, interrompendo somente para perguntar: "Você acha que eu beijaria uma tola?". Sobe som, Tu Me Acostubraste, com Lucho Gatica.
Mas deliro, deliro. E talvez fosse delírio aquele grito de socorro por escrito que eu havia visto na página 653 do Diccionario Didáctico de Español Avanzado, das Ediciones SM, de Madrid, 1306 páginas. Loucura, loucura produto da cafeína e da falta de sono. Eu disse 1306 páginas? O verbo 'hundir' está exatamente no meio do livro. Exatamente.
Melhor não mexer com essas coisas. Uma boa semana para todos.
(1) Como é que tu não me conhece Traques Guri? Tu não viveu!
(2) A cliente era a culpada.
(3) The plot thickens, bem mais bonito no original.
(4) Só para ver se você estava prestando atenção.
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