Estavam todos à mesa do almoço e era um domingo o dia em que a sogra do Agenor descobriria que ele, por trás daquela cara de santo, tinha uma vida pregressa pouco recomendável. Almoçava com a família o pastor da igreja freqüentada pela sogra do Agenor que, antes de começar a comilança, ministrou uma oração em agradecimento ao Senhor pela fartura que ora tinham eles diante dos olhos.Disse que o alimento era dádiva de Deus, clamou por misericórdia a todos os pecadores ali presentes e, também em nome de todos, pediu, de lambuja, que aquela mesa continuasse farta por outros tantos e tantos domingos que ainda haveriam eles de compartilhar, juntos e unidos....
“Na paz do Senhor! - completou a sogra do Agenor, a mão sobre a Bíblia, no exato instante em que tocou o telefone.
Ela correu para atender. Aliás, essa era uma mania da sogra que o Agenor abominava. Tocava o telefone e ela corria para atender, antes de todo mundo. Disse alô, escutou um pouco e a impressão que tiveram foi de que, no outro lado da linha, estava ninguém menos que o demônio em pessoa.
“O quê!!!???” - gritou ela, os olhos arregalados. “Aqui não tem ninguém com essa...”, vacilou um pouco, “com essa alcunha!!!”
Dito isso, desligou o telefone e voltou para a mesa. Quando sentava-se, ainda impregnada pela raiva que lhe provocara o telefonema, olhou para o pastor, em tom respeitoso, e falou:
“Vê se pode, irmão!? Alguém pedindo pra falar com o Calcinha.”
É preciso dizer que alguns fatos se sucederam de forma quase simultânea a partir da pronúncia da palavra “calcinha” pela sogra do Agenor: ela se ajoelhou na frente do pastor e pediu perdão pela blasfêmia, só podia estar possuída pelo maligno para permitir que aquela indignidade tivesse saído de sua boca; tocou o telefone novamente e tão logo se ouviu o primeiro toque da campainha correram para atender o Agenor e a sogra. Para azar Agenor ela chegou primeiro.
“Alô!”, disse ela, cheia de razão. "Queimmm!?" Ela pensou um pouco e o Agenor gelou por dentro.
“Um momento...”, disse, passando o fone para o genro.
Ele atendeu, despistou um pouco, disse que o formulário precisava ser preenchido nos termos da resolução de diretoria número tal e que aquilo fosse cobrado imediatamente do chefe do protocolo, que devia providenciar uma retificação autenticada com urgência e que, na gaveta da esquerda, a segunda de cima para baixo da escrivaninha da dona Mirtes, estava o adendo petitório a ser entregue ao desembargador Claudiney naquele dia mesmo, junto com a cópia do protocolo anexada ao processo PP45L25. Não batia coisa com coisa, naturalmente, até porque o cargo do Agenor na firma era de contínuo.
Quando sentou-se à mesa novamente, o pastor na cabeceira da mesa diante de um prato até as bordas de espaguete à bolonhesa, o Agenor sentiu que o clima não era nada bom. Foi então que a sogra falou, puxando uma coxa de frango para o prato:
“A voz do segundo telefonema era a mesma do primeiro...”
O Agenor se serviu de salada de maionese e começou a comer, com vagar. A quebrar o silêncio tenso da mesa apenas a barulho do pastor empurrando espaguete pra dentro. Até que a sogra falou de novo:
“A voz do segundo telefonema era a mesma do primeiro...”
O Agenor terminou de mastigar a comida, olhou para a sogra, depois para o pastor e perguntou:
“O senhor acha que eu tenho cara de Calcinha, irmão?”
O pastor nada disse, continuou comendo. Então o Agenor olhou para a sogra:
“A senhora está insinuando que meu apelido é Calcinha, dona Neca?”
A sogra olhou para o pastor, que não parava de comer, e, diante do silêncio dele, ficou também quieta.
“Pois então a partir de hoje não se fala mais em Calcinha dentro desta casa!”, sentenciou o Agenor, puxando uma garfada de massa para o seu prato.
Foi aí que a mulher do Agenor, até então em silêncio absoluto, abriu a boca pela primeira vez desde que começaram a almoçar:
“Até parece!”, disse ela, olhando timidamente para o pastor que, entre uma garfada e outra de espaguete, passava o dorso da mão no queixo e no pescoço para limpar o molho que lhe escorria dos cantos da boca enquanto mastigava.
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