Éramos doze pessoas. Começamos a nos reunir no último domingo de cada mês na casa do Abreu para debater textos filosóficos, beber e fumar. Quem começou tudo foi o Abreu. Ele tinha idéias bizarras. "O excesso nos liberta momentaneamente da prisão de racionalidade, ordem e produtividade em que vivemos", disse ele no nosso primeiro encontro. Eu me senti atraída logo de cara pelo Abreu. Ele não trabalhava, não estudava, não saía muito do seu apartamento, não dormia, não comia. Somente lia, escrevia, bebia uns copos d'água de vez em quando e, quando eu batia certas noites na porta do seu apartamento após a faculdade, trepava comigo. Ele me fazia gozar inúmeras vezes, e se eu abria os meus olhos encontrava os dele me encarando, observando com uma atenção doentia o meu rosto, as minhas reações. Eu gostava daquilo, e amava ele.Tirávamos xerox de capítulos de livros e discutíamos a existência, a morte, o significado das coisas. Durante as reuniões, entrávamos numa realidade paralela. Nada de drogas pesadas ou alucinógenas. "As drogas são um placebo", dizia Abreu. "Não há nada que elas proporcionem que não possa ser obtido através da experiência pura." Rolava um uísquezinho e cigarros, mas se algum fumeta ousasse sacar um baseado seria expulso a pontapés. Em contrapartida, realizávamos orgias intensas. Muita comida, muita foda, música bizarra. Tudo em excesso. O excesso é transgressão, e toda transgressão é sagrada, dizia Abreu. Com o tempo, algumas manifestações espontâneas foram se cristalizando em rituais. Abreu desenhava símbolos e conduzia os encontros como um líder espiritual. Dizia: "o sexo, seus filhos da puta, é o único substituto autêntico para a morte, é a única coisa capaz de aniquilar momentaneamente nossas individualidades, de nos jogar por um instante na eternidade cósmica, sem que pra isso tenhamos que pagar com a própria vida." Alguns de nós escutavam frases assim como pobres camponeses diante de um messias, mas eu não. Eu sacava qual era a do Abreu. Ele era um cara sozinho pra caralho e não queria se sentir tão sozinho. Como eu, como todos os outros.
Chegamos ao ponto de fundar uma sociedade secreta, "O Bucéfalo". Escrevemos o nosso livro de diretrizes. Ninguém entrava, ninguém saía, ninguém comentava nada com ninguém. Era realmente secreto. Foi prevista uma data para a inauguração da sociedade. Haveria um ritual. Abreu queria encenar "a mais radical experiência de transgressão possível, algo que colocasse todos os membros em contato com o mais profundo vazio". Um sacrifício humano.
Na reunião em que a idéia deste ritual inaugural veio à tona, todos os membros d'O Bucéfalo ofereceram suas próprias vidas em sacrifício. Não poderia haver libertação maior e gesto mais nobre do que sacrificar-se em favor da transgressão sagrada dos demais membros. Foi uma decisão difícil que exigiu longa deliberação. Fui a escolhida. Reagi com medo e prazer. Eu queria e não queria ser morta ritualisticamente. Queria morrer e viver com a mesma intensidade. Essa ambigüidade me dava forças, uma sensação de bem-estar. Fui tratada como um ser superior pelos outros.
Eu era divina.
Nas semanas seguintes, eu e o Abreu nos amamos mais do que nunca. Trepávamos e conversávamos madrugadas adentro. Eu faltava muito ao trabalho e às aulas.
O ritual inaugural foi marcado para um domingo, no sítio de um dos membros da sociedade. À tardinha, um enorme porco foi sacrificado. Bebemos o sangue e fizemos um banquete. Quando escureceu, acendemos uma fogueira no campo aberto. O céu estava muito limpo e absurdamente estrelado. Todos estavam vestidos de preto. Não era nenhuma bobagem gótica nem nada assim, mas o Abreu achava legal que todos estivessem com roupas da mesma cor, e o preto é aquela coisa básica. Havia um altar de madeira sobre o qual me deitei. A faca de churrasco usada para matar o porco estava descansando sobre a grama. Ao redor do calor e dos estalos da fogueira, o breu e o silêncio eram absolutos.
De repente, o Abreu ficou perturbado. Um detalhe crucial lhe havia escapado. Já tínhamos uma vítima, mas quem seria o carrasco? A pergunta soou fraca e impotente. Ninguém respondia. Quem vai executar o sacrifício? Nenhuma resposta. Todos manifestaram vontade de ser a vítima, mas agora nenhum de nós ousava assumir a função de executor. Fiquei furiosa. Bando de merdas. Mas permaneci quieta. Apenas olhei pro Abreu. Diante do recuo dos outros, ele certamente assumiria a tarefa. Quando consegui encontrar seu rosto no escuro, vi que o imbecil não estava disposto a terminar o que começou. Estava com medo, derrotado. Começou a ir embora, junto com os outros.
Nunca me senti tão rejeitada. Enquanto ele se afastava, peguei a faca de churrasco com as duas mãos, me aproximei e enterrei a lâmina na nuca do desgraçado, até o cabo. Os demais ouviram seu grito e correram em nossa direção. Fiquei aguardando "a mais radical experiência de transgressão possível, algo que colocasse todos os membros em contato com o mais profundo vazio". Mas nada aconteceu. Senti muito frio. Mas nada aconteceu. Deitei no capim, ignorando os grunhidos de desespero dos outros.
(dedicado a Georges Bataille)
Daniel Galera escreve às terças no Popular
Leia a crônica anterior
Veja as notícias »