» Página inicial

    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

Historinha singela de Dia das Mães

Terça, 14 de maio de 2002, 18h11



O banheiro do posto de gasolina estava ocupado, e ele se encostou na parede para esperar. O colega estava completando o tanque de um Honda Civic, e enquanto aguardava ele ficou espiando de canto pra ver se não chegava nenhum cliente. A porta do banheiro foi aberta com força, e do interior daquele cubículo encardido saiu uma mulher linda. Não tinha mais de trinta anos, usava um vestido estampado e olhou rapidamente nos olhos dele ao passar, um instante suficiente pra ele notar um resto de lágrimas ao redor dos olhos. Foi rápido. Ele entrou no banheiro e nunca mais teria pensado naquilo, mas quando levantou a tampa da privada notou um papel amassado boiando entre as paredes de porcelana. Filetes de água ainda escorriam das bordas do vaso, indicando que a descarga fora puxada há pouco. O papel encharcado deixava transparecer alguma anotação feita com caneta azul. Ele ficou com o pau na mão por alguns segundos, pensando se devia ou não fazer aquilo. Fez: enfiou a mão dentro d’água e pegou o papel amarrotado. Era uma folha de caderno, e nela havia apenas um número de telefone. Não era daquelas letras redondas e gordinhas típicas de mulher, mas era uma caligrafia feminina, elegante. O rosto da mulher que passara por ele voltou ao seu pensamento, o rímel retocado, a tristeza. Saiu do banheiro, mas a mulher não estava mais no posto. O colega disse que era a motorista do Honda Civic, estava sozinha no carro e pegara a avenida há poucos segundos. Ele esqueceu de mijar. Queria ter alcançado a mulher antes dela ir embora, perguntar o que estava errado, se ele podia ajudar de alguma forma. Bah, não, que bobagem, concluiu em seguida. Não dava pra simplesmente puxar conversa com uma moça rica daquelas. De qualquer maneira, foda-se, ela já foi. Mas ainda assim ele tomou o cuidado de transcrever o número borrado do papel molhado para o verso de um cartão de uma borracharia que estava na sua carteira. Entre tanques abastecidos e checagens de água e óleo no motor, várias vezes ele pensou em ir até o orelhão do posto e discar o número, só por curiosidade. Mas sentia-se idiota logo depois de cogitar essa possibilidade. Voltou pra casa no final do turno, à meia-noite. Os pais e a irmã sempre estavam dormindo quando ele chegava em casa, e já estavam sempre na rua quando ele acordava no meio da manhã. Gostava daquelas horinhas em que tinha a casa só pra ele, fazia um almoço ou requentava a janta da noite anterior, olhava uns desenhos na TV e prestava algumas homenagens a pôsteres de Playbos antigas. Mas desta vez sentiu-se solitário e triste. Não almoçou e saiu mais cedo de casa para trabalhar. Desceu do ônibus correndo, como se estivesse atrasado para algum encontro, embora ninguém o esperasse no posto. Foi até o orelhão, sacou o cartão e discou o número anotado no verso. Depois de oito toques, atenderam. Uma loja de conserto de gaitas. Perguntaram o que ele queria, ele disse que tinha uma gaita estragada, precisava conserto. Perguntou se atendiam no sábado e anotou o endereço. Era na zona sul, atravessando toda a cidade. Não possuía gaita nenhuma, não tinha nem certeza de saber o que era uma gaita, mas ainda assim no sábado pegou dois ônibus até a zona sul. Era uma manhã fria e ensolarada. Deu muitas voltas a pé mas não conseguiu encontrar a rua procurada. Aproximou-se de uma turma de skatistas que saltavam sobre uma rampa de compensado e pediu direções. Ah, a clínica de aborto? É por ali, duas quadras e depois à esquerda, disse um dos guris. Não é uma firma de conserto de gaita?, perguntou ele, e todos riram bastante. Ele também riu. Agora tudo fazia um pouco mais de sentido. Ainda caminhou até o endereço. Uma casa muito antiga, de arquitetura neoclássica, branca, parcialmente coberta de trepadeiras e cercada de mato alto. Observou por trás da grade durante alguns minutos, mas não tocou a campainha. Um ano e dois meses depois, ao enfiar a mangueira na boca do tanque de um Honda Civic, reconheceu a mulher do banheiro no banco do passageiro. Excitado, deixou a mangueira fazendo seu serviço sozinha e buscou uma rosa. Haviam várias delas dentro de um balde no chão, deviam ser distribuídas às clientes que fossem mães. Aproximou-se da janela e disse Com licença, senhora, a senhora já é mamãe? A mulher tirou os óculos escuros para olhar para ele. No banco do motorista, um homem de terno, com queixo de bundinha, acendia um charuto. Ela sorriu e disse Não, ainda não. Ele disse Ok, mas então aceita a rosa por ser bonita como tu é. O homem olhou feio, mas ele não estava ligando. Estava feliz, sentia-se dono de algo muito especial. Lavou os vidros do carro, descontou o valor do cartão de crédito e observou o Honda Civic cavar seu espaço de volta para dentro do engarrafamento.

Leia a crônica anterior

Veja as notícias »


outros canais
  • Exclusivo!
    Televisão, moda, astros e babados
  • Notícias
    Tudo o que acontece no Brasil e no mundo
  • Esportes
    Notícias, fotos e cobertura de jogos
  • Revistas
    Para todas as idades e gostos
  • Copyright© 1996 - 2000 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved.