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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

A fotografia do morto

Quinta, 16 de maio de 2002, 16h41



A morte e o sentido da vida. Eneida pensou se alguma vez as duas coisas não são a mesma, se ainda estava dormindo no quarto ou de pé na cozinha, se ainda era o sonho ou se estava mesmo de dia. Só teve certeza quando seu João deu um pigarro, fez o bigode dançar de um lado para o outro, numa careta, e depois cuspiu a notícia junto com biscoitos de polvilho.

“Morreu... caiu da escada... traumatismo craniano.... coitado”.

Acordou de uma vez. Pegou duas lentes e o flash e os enfiou em bolsos diferentes do colete. Passou geléia de goiaba no cream cracker e entrou comendo na Rural. Seu João ainda estava na cozinha, se servindo de café. Arrastou os pés até o carro, mas depois dirigiu depressa. Uma nuvem de poeira encheu as ruas de terra até o carro parar diante da igreja. Do lado de fora, as pessoas se levantaram quando a viram. Girando a cabeça, Eneida tentou relaxar os músculos do pescoço, mas os sentiu ainda mais tensos quando o povo começou se aproximar. Primeiro as crianças, depois os adultos, uma pequena multidão se aglomerou em silêncio à sua volta e depois abriu passagem para a porta da igreja. Ouviu às suas costas uma mulher comentando baixinho: é a fotógrafa de morto.

Mais atrás, seu João dava explicações:

“Ela ainda estava dormindo. Tive que bater”.

Com um olhar rápido, avaliou o ambiente. Escuro demais, constatou. Pediu para abrirem as janelas e as portas da igreja. Disse: preciso de luz. Umas trinta pessoas velavam o corpo, algumas se levantaram e começaram a destrancar as portas e janelas.

Se alguém perguntasse, responderia que não seria fotógrafa de morto caso tivesse se casado com Alfredinho. Os dois namoraram durante oito anos, mas um dia ele a procurou e terminou tudo. Não queria mais, disse. Logo depois começou a sair com Helena. Se casaram. Por quase dois anos, Eneida não saiu de casa. Sofreu sozinha a dor do abandono, feito uma heroína de fotonovela. Foi quando os pais, com pena, compraram a máquina. Começou a fotografar para se distrair. Como passou a tirar fotos de mortos é outra história.

Luísa, irmã de Alfredinho, se levantou de um banco e entregou o dinheiro a Eneida.

“Quatro fotos, uma para cada irmã e uma para Helena”, disse. “Queremos foto do rosto. Vê o que dá pra fazer”.

Alfredinho morreu com um grande buraco na testa. Escorregou do alto da escada e caiu cinco ou seis metros. A cabeça foi enfaixada com gaze para o velório, só uns poucos chumaços do cabelo já grisalho à mostra. O resto dos ferimentos ficou escondido embaixo do terno azul claro. No bigode, sobraram gotas de sangue ressecado. Um chumaço de algodão em cada narina, um em cada ouvido.

“Vê o que dá pra fazer”, Eneida repetiu baixinho diante do corpo. Com um aparelho, mediu a luz rente ao rosto. Um suspiro, constatou que estava boa. Outro suspiro, mais profundo, enfiou o olho pelo visor da máquina e ajustou o foco.

Então sentiu um calafrio e quase desmaiou.

As pernas tremendo, a respiração pesada, olhou e viu outra vez.

O morto estava....

Afastou a máquina. No rosto de Alfredinho, a expressão cinzenta de quem a vida já se esvaiu.

Devagar, empunhou de novo a máquina e olhou pelo visor.

Dentes faltando na frente, um sorriso 1001. Gengivas gastas pelos anos em que foram obrigadas a fazer a função dos dentes. O bigode manchado de nicotina e curvado para cima. As bochechas rosadas, com o sangue vivo e circulando.

Alfredinho sorria.

Disparou o botão. Uma, duas, muitas vezes. De vários ângulos. Geralmente economizava filme. Duas ou três chapas, só para garantir. Morto não dá trabalho. Mas desta vez só parou quando o filme acabou.

Visto sem a câmera, Alfredinho continuava morto.

Saiu da igreja sem falar com ninguém. Tentou voltar a pé, mas na metade do caminho seu João apareceu na Rural. Em casa, se trancou no quarto escuro. Revelou e secou o filme. Fez cópia de cada uma das 22 fotos de Alfredinho. Vinte e dois rostos sorrindo com bocas desdentadas.

“Vai sair o enterro”, seu João gritou do lado de fora do quarto escuro. “A foto já tá pronta?”.

E se ele quisesse ver? Eneida escondeu o filme, pôs as fotos no bolso e voltou para a Rural. No caminho, escondeu as mãos entre as pernas para parar de tremer. Na porta da igreja, Helena a viu e veio na direção do carro.

“Ele gostava muito de você. Falava de você com muito carinho”, disse Helena. “Acho que é hora de esquecer o passado”.

“Também acho”.

“Vai ficar para o enterro?”

“Não. Escuta: eu trouxe as fotos”.

Como é o choque de se ver um morto? Se preparou para sabê-lo diante de Helena. De repente, sentiu que mais do que isso, queria seu medo e sofrimento. Tinha direito. Todos as décadas de desprezo, de saber que nunca esqueceria Alfredinho, vieram à tona. Sentiu-se bem pensando: Ela vai desmaiar. Não é forte como eu, não agüenta nada.

Mas Helena olhou as fotos e não desmaiou. Comentou: “Ficaram boas”.

Eneida sentiu uma vertigem quando foi sua vez de olhar as fotos. Antes de desmaiar, viu o mesmo Alfredinho do caixão que já ia sendo fechado para o enterro. A cabeça enfaixada, cortes e hematomas no rosto, mal disfarçados com maquiagem. O rosto circunspecto de um morto.

Leia a crônica anterior

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