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    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

Subconsciente

Terça, 21 de maio de 2002, 14h26



Virei a esquina e avistei a praça. O som da multidão reverberava entre os prédios, abafando a música popularesca tocada por um carro de som de uma rádio FM. Uma dúzia de longas filas de homens, a maioria jovens, ocupava o centro da praça. Ao redor destas filas, havia um cinturão de barraquinhas que vendiam cerveja e lanches. Observei os homens e rapazes: alguns deles tinham grandes manchas de sangue entre as pernas. Fui descendo a rua, em direção ao centro da praça. Passei por grupinhos de meninas eufóricas, que me fitavam com desafio e olhos curiosos. Famílias passeavam, com pais tomando cerveja e carregando filhos na garupa.

Me deu vontade de mijar. Provavelmente por causa no nervosismo. Uma última mijada, então. Fui na calçada mesmo, atrás de um carro. Quando terminei, tremi e o ar me faltou na garganta, pois percebi que a essa altura meu destino era inevitável e só restava enfrentar o medo. Como acabar com uma namorada, virar as costas e dar o primeiro passo.

Escolhi a fila mais longa. Os homens alinhavam-se com cuidado, mas riam e conversavam alegremente com os outros ao seu redor. Sequei minhas mãos úmidas esfregando-as dentro dos bolsos. A fila andava mais rápido do que eu gostaria. Olhei por cima da cabeça do cara na minha frente. Faltavam uns vinte pra chegar a minha vez. Me deu vontade de sair correndo dali, mas eu sabia que era inútil. Além de tudo, era covardia. Eu sou um cagalhão.

– Ei!

Olhei pro lado, era um sujeito do meu colégio antigo.

– Oi – respondi, apático. Ele, por sua vez, estava saltitante.

– E então, ansioso pra chegar a tua vez?

– Que nada. Na real, estou morto de medo.

– Ih, fica frio, não dói nada. É rapidinho.

– Pode até não doer, mas é foda. E o sangue?

– Não te preocupa. A hemorragia cessa a tempo, não tem perigo. É tudo calculado. Meu irmão fez ano passado, e disse que não dá nada, só uma fraqueza que passa rápido. Ah, é claro, dói por uns dias, mas depois passa. Nenhum drama.

Faltavam uns cinco antes de mim. Já dava pra ouvir o som dos alicates. Como os outros podiam estar tão radiantes, empolgados? Algumas garotas ficavam em volta, rondando e observando o trabalho dos cortadores, dando risadinhas e fazendo comentários bem-humorados. Os garotos respondiam com tiradas espertalhonas, e cutucavam-se. Cheguei perto o suficiente pra acompanhar tudo: um rapaz deu um passo à frente e, alegre, levantou a camiseta e abaixou a bermuda, oferecendo o pênis ao sujeito vestido de branco. Este posicionou o enorme alicate, tipo aqueles de jardinagem, e com um movimento rápido decepou o pau, que caiu sobre um recipiente no chão, acumulando-se junto a dezenas de outros. Como se soprado de um canudinho, um fio de sangue desceu em cascata do púbis do rapaz, que apenas estancou o local levemente com um pano e depois vestiu a bermuda. Cumprimentou entusiasticamente dois amigos que estavam na fila atrás de si e desfilou embora, cheio de trejeitos orgulhosos. Faltavam dois pra chegar a minha vez.

Chegou a minha vez. Eu tremia, mas fiz um grande esforço para agir naturalmente. Diante de mim, o cortador exibia seu alicate de lâminas ensangüentadas. Posicionei-me diante dele, com o recipiente repleto de pênis decepados aos meus pés. Dei uma respirada profunda, daquelas que lavam os alvéolos. Era irreversível. Eu já estava ali. Eu era o único com medo. O único com frescuras. Foda-se.

Botei o pau pra fora. O cara encostou o alicate e fechou. O som e a sensação foram semelhantes ao de um palmito sendo cortado. Sem olhar uma única vez pra baixo, levantei de volta as calças a saí, caminhado rapidamente. Demorei pra sentir alguma coisa. Olhei pra minha calça, estava limpa. Primeiro veio um latejamento, algo como uma dormência. Olhei de novo pra calça: uma mancha cor de vinho espalhava-se pelo tecido, crescendo diante dos meus olhos. Senti fios de sangue descendo as pernas. Caminhei para o lado de fora da praça. Duas garotas olharam pra mim, riram e fizeram um comentário que não consegui escutar. A sensibilidade foi aumentando. Já podia sentir o tecido da calça roçando contra o meu toco sanguinolento no meio das pernas. O suor escorria no meu rosto, pescoço, braços. Uma tontura vinha aos poucos. Percebi que, dali a alguns segundos, eu iria desmaiar.

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