Alexandre não viu sinal de corpos até se agachar junto à porta do carro, do lado do passageiro. Presa no cinto de cabeça para baixo, numa posição que tinha algo de anatomicamente impossível, havia uma garota loira, com o cabelo preso em um rabo-de-cavalo que apontava triste para o chão. Vestia uma blusinha rosa, mas era impossível enxergar as pernas. O sangue escorria em goteiras contínuas da cabeça. Alexandre soube que estava morta. Alguma coisa indefinida estava faltando ali. O reggae ainda tocava nos alto-falantes do carro, e o contraste daquela música alegre e paspalha com a imagem sangrenta era quase cômico.Deu a volta no carro. A outra lateral estava completamente esmagada, mal dava para identificar a porta, e era impossível imaginar o corpo íntegro de um motorista ocupando algum espaço no meio da ferragem retorcida. Uma sacola de prancha de surfe ainda estava presa no teto, disforme, com seu conteúdo esmigalhado. Pelo vidro espalhado no asfalto, Alexandre calculou que o carro capotara diversas vezes. O sol estava se pondo, e a estrada estava deserta nos dois sentidos.
Abaixou-se diante da porta do motorista e observou atentamente entre as brechas da lataria, sem ver nada parecido com uma pessoa. Mas escutou um gemido. Podia ser alguma percussão daquele reggae medonho, mas ele não se convenceu. Então ouviu outro gemido, agora nítido e prolongado.
"Opa. Tá vivo?"
Se deu conta da imbecilidade da pergunta e lamentou aquele sinal de vida. A ausência de sobreviventes teria sido bem mais simples.
"Me tira daqui", resmungou a voz nos destroços.
Alexandre enfiou os dedos numa beirada da porta, firmou um pé na lataria e puxou com toda a força. A porta foi cedendo, expondo um pouco do interior do carro
"Porra, não tou sentindo minhas pernas, véio".
Alexandre viu um ombro. Moveu o corpo para conseguir outro ângulo de visão, e conseguiu enxergar a cabeça de um rapaz de uns vinte e cinco anos.
"Tou te enxergando. Como tu tá se sentindo?"
"Não tou sentindo meu corpo".
"Consegue se mexer?"
"Não consigo fazer nada".
Havia muito sangue, e Alexandre ficou tonto. Por que aquele desgraçado tinha que estar vivo?
"Fica quieto aí, vou buscar ajuda".
"Não. Fica aí".
"Eu não posso fazer nada, vou chamar algum resgate".
"Fica aí. Quero te pedir um favor. Tu tem papel e caneta aí?"
"Hein? Ahn, não".
"Porra, então anota de cabeça. Nove cinco meia quatro, quatro cinco oito nove. Ouviu? Esse telefone é de uma guria chamada Luciana. Diz pra ela que é uma merda ela ter que descobrir isso desse jeito, mas agora nem faz mais muita diferença, né? Ai, caralho, não tou conseguindo respirar".
"Ei. Segura firme aí, campeão".
O rapaz deu mais alguns grunhidos e morreu. Um celular começou a tocar, com o hino do Grêmio. Estava enfiado em algum lugar dentro do carro destruído. Ninguém atendeu, e os toques pararam. Alexandre voltou para o seu carro e analisou o mapa para descobrir onde estava. Ainda dirigiria umas duas horas até a próxima cidade. Anotou o telefone da tal de Luciana no verso de uma nota fiscal. Pensou por alguns instantes, pegou o isqueiro e queimou a nota. A viagem era cansativa, a serra tornava-se mais íngreme a cada quilômetro, e sempre que ele olhava para o topo de uma montanha, tinha vontade de estar lá em cima.
Leia a crônica anterior
Veja as notícias »