O Danevaldo e a Melissa estavam casados há 15 anos e era nisso que ele pensava quando tocou o telefone. Fazia uma espécie de inventário mental dos anos vividos até ali, desde o dia em que se conheceram, ele devorando um prato de ostras, num boteco de praia, até os dias atuais. Aliás, a história das ostras foi o que mais rendeu na relação íntima do feliz casal e, para ser mais exato, era nisso que ele pensava quando tocou o telefone.Durante anos a fio a Melissa sempre fez questão de lembrar o episódio, enquanto se contorcia na cama, entre travesseiros e lençóis amarfanhados, diante de um Danevaldo de quatro, como se bebesse leite num pires, sedento e desatinado.
- Ai, seu cachorro! - ela gritava. - Quando vi você sugando as conchinhas de ostras daquele jeito, até a última gota, logo vi que você era fera! Seu cretiiiiino!!!
Foi, então, que tocou o telefone, bem nessa altura do inventário que fazia mentalmente o Danevaldo. Era a Melissa dizendo que precisaria viajar às pressas, já estava no aeroporto, sua mãe havia se submetido a uma cirurgia de emergência e precisava de ajuda.
O Danevaldo se deu uma hora, a título de carência, telefonou para casa e dispensou a empregada. Passou no shopping e comprou um Ballantine's 12 anos, seis tipos de queijo, uma copa, pão com gergelim, patê e uma lata de pêssegos em calda e outra de creme de leite.
Entrou em casa e, sem perda de tempo, virou o sofá da sala de pernas para o ar e retirou de dentro sua coleção secreta de bolachões, onde o que mais tinha era Zezé Di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó, João Mineiro e Marciano, Sula Miranda, Christian e Ralf, entre outros do gênero, incluindo Xuxa, Angélica, Eliane e Sandy e Junior.
Estava Feliz, o Danevaldo. Teria um fim de semana inteiro para ouvir e reouvir seus discos preferidos, e comer pêssego em calda com creme de leite, coisa que a Melissa não podia nem ver, de tanto que odiava.
Mas sabe-se lá porque cargas d’água, até porque isso é o que menos interessa agora, a Melissa deixou para viajar no dia seguinte e voltou para casa. De fones nos ouvidos, quando ouvia pela sexta vez Flecha Certeira, a sua preferida, com Christian e Ralf, é que Danevaldo percebeu a porta, presa pelo pega-ladrão, que quase vinha abaixo.
"Posso saber porque demorou tanto pra abrir essa porta, senhor Danevaldo?", gritou ela fora de si, enquanto olhava para os discos esparramados pela sala. "E que extremo mau gosto, senhor Danevaldo!"
Dito isso, saiu pelo apartamento, revirando tudo o que via pela frente.
"Aonde a vagabunda se meteu, Danevaldo!?"
"Ela quem, Mel?"
"Não seja cínico, Danevaldo!"
"Eu explico, Mel! Não é nada disso que você está pensando!"
"Não seja cínico, Danevaldo! E não me chame de Mel, por favor!"
"Eu só estava ouvindo música, amor!"
"Sem insultos, Danevaldo! Me respeite, por favor! Aonde essa ordinariazinha se meteu, me diz?"
"Não tem mulher nenhuma aqui, fofa!"
A Melissa, então, deu um passo à frente e pisou em cima de um disco. O Danevaldo tentou contê-la, mas não adiantou. Ela investiu com fúria sobre seus bonachões de estimação e ele só viu uma saída na tentativa de salvá-los.
"Está bem! Está bem!", disse ele, aflito. "Eu pretendia apenas te poupar de um grande desgosto, amor!”
“Para de enrolar e fala, nulidade!"
"Ela desceu pelo elevador de serviço... Perdão amor! Foi um momento de fraqueza..."
"Ah, mas eu quero ver a cara dessa vagabunda agora mesmo! Dentro da minha própria casa, não!", gritou ela, ganhando o caminho do elevador.
Enquanto isso, o Danevaldo tratava de salvar sua coleção de bolachões, colocando-os de volta dentro do sofá. O resto ele tentaria resolver depois, com mais tempo e sem a necessidade de usar a força.
Crônicas anteriores »