Quando chegou aos sessenta e oito, cerca de dois anós após a morte da esposa, o velho Emílio vendeu a casa e se mudou de Espumoso, cidade onde viveu desde menino, para um sitiozinho no sul do Estado. O pedacinho de terra ficava numa região íngreme, ondulada por morros cobertos de arbustos e rochas nuas, duas horas de carro de Porto Alegre. Não havia luz elétrica, esgoto e água encanada num raio de cinqüenta quilômetros. Nas propriedades vizinhas, famílias de agricultores e peões solitários cultivavam lavouras de fumo e de milho e mantinham pequenas criações de gado, porcos, ovelhas e cabritos. No ano anterior à mudança, Emílio fez freqüentes viagens até o sítio com sua caminhonete carregada de material de construção, e numa estreita faixa de terreno plano, na encosta de um morro virada para o oeste, levantou com as próprias mãos uma casinha de tijolos e madeira, coberta de telhas de cerâmica. Derrubou algumas árvores e limpou o terreno ao redor da nova casa. Queimou o mato e os arbustos, depois retirou os tocos e pedregulhos. Drenou um pequeno charco. Explorou a encosta dos morros ao redor da futura residência, até encontrar um olho d'água permanente, que canalizou até uma caixa d'água. Cavou uma fossa e construiu um banheiro, com privada e tudo. Quando ficou satisfeito, juntou suas coisas e se tocou para lá.
Nos primeiros meses de sua nova vida, Emílio plantou uma horta para consumo próprio e adquiriu, além de um cavalo, algumas ovelhas e galinhas, animais que passou a criar e comercializar nos mercados da capital como fonte de renda. Tinha ainda uma poupança razoável acumulada nos anos em que plantou soja em Espumoso. Ganhava alguma coisa extra jogando cartas nos bares da redondeza, mas o problema é que perdia quase tudo nos jogos seguintes. Mas as coisas funcionaram para Emílio. Tudo se deu mais ou menos como planejou. Estava decidido a morrer no pequeno sítio que montou em seus últimos anos de vigor físico. Ainda era forte como um boi, mas não dissimulava a tranqüila consciência de que a partir dali as coisas mudariam.
A única companhia permanente de Emílio eram dois cachorros ovelheiros. Um era maior e mais corpulento. Seus pêlos compridos se emaranhavam em cachos de cor parda. O outro cachorro era um pouco menor, e tinha o pêlo preto. Nenhum dos dois tinha nome.
Emílio era meu vô. Eu e meu pai o visitávamos de vez em quando no sítio. Nestas ocasiões, ele sempre carneava uma ovelha para o churrasco, diante dos nossos olhos urbanos e assustados. Pendurava o ovino amedrontado num galho de árvore, abria o pescoço com a faca e deixava ele sangrar por alguns minutos. Rachava um talho em cada um dos quatro cascos, depois abria o couro da virilha até o pescoço. Com a lâmina e com as mãos, descolava todo o pelego da carne e, por fim, cortava a barriga e deixava cair o bucho sobre o capim encharcado de um sangue grosso e vermelho-claro.
Aquele ritual de sacrifício me encantava. O sangue derramando e o som da carne sendo cortada me causavam um horror quase intolerável, que eu superava com grande esforço. Antes do abate, eu gostava de afagar a ovelha, olhar nos seus olhos, atento à sua respiração. Tinha a impressão de que ficavam resignadas com seu destino, embora estivessem apenas paralizadas pelo medo. E quando estavam com o pescoço aberto, acompanhava a vida escapando lentamente de seus corpos, obcecado em identificar o ponto exato em que já não estavam vivas, não estavam mais ali. Então a tensão desaparecia. Eu tocava o corpo. Já não era uma ovelha. O sangue era absorvido pela terra ou coagulava. Os cachorros devoravam placidamente as vísceras. Meu vô colocava um pernil e uma costela no fogo, a carne ainda aquecida pelo calor natural do bicho vivo, temperava com sal grosso e ele e meu pai iam tomando uns traguinhos de cachaça até que estivesse assado. Comíamos com as mãos, tirando lasquinhas da carne com um facão.
Algo mais me fascinava nas idas ao sítio: os cachorros. Grandes, magros, caminhando num trote esquisito, meio desequilibrado. Os pêlos longos se enozavam em verdadeiros dread locks. Apesar do aspecto selvagem, eram muito dóceis e medrosos. Hesitavam bastante antes de se aproximar de qualquer pessoa, inclusive do próprio Emílio, que nunca eu vi fazer um único afago nos seus dois únicos companheiros. Depois que venciam o medo e chegavam perto o suficiente para receber uma coçadinha atrás das orelhas, era muito difícil livrar-se deles. Queriam mais e mais carinhos, e às vezes só bom um tapa no focinho os convencia a se afastarem.
Eu intuía a importância que os cães tinham pro meu vô. Ele chegava a dizer que não os trocaria por dois empregados humanos. Estavam sempre alguns metros atrás do velho Emílio, escoltando o dono e vigiando o terreno atrás e à frente. Mesmo quando ele estava a cavalo, os cachorros corriam atrás, disparando entre as pedras como guepardos em caça, correndo distâncias enormes, tirando energia não se sabe de onde. Com meus oito anos de idade, eu os via com uma aura sobrenatural, como animais sobreviventes de uma era remota, seres de outro mundo.
Uma vez meu vô me colocou sentado entre suas pernas na sela do cavalo, e saímos galopando juntos. Os cachorros fizeram escolta por todo o caminho. Fomos aos cantos mais extremos da propriedade e subimos até o topo de morros rochosos. Os morros e vales se alternavam até quase o horizonte, onde se enxergava uma grande planície. Eu perguntei pro meu vô se ele não cansava de ficar sozinho lá.
Demora muitos anos pra gente descobrir o que é estar sozinho de verdade, ele me respondeu. Pode ser difícil de acreditar pra ti, mas eu não sinto solidão aqui. Tu nunca se sentiu sozinho morando em Porto Alegre?
Me lembro das frases exatas. Lembro como entendi o que ele queria dizer. Imaginei se sentiria mais ou menos solidão caso morasse num fim de mundo como esse. Talvez fosse sempre a mesma coisa.
Oito meses depois, meu pai me contou que os cachorros estavam mortos. O velho Emílio havia escutado latidos insistentes, e saiu atrás deles pra ver o que se passava. Encontrou os dois ao redor de uma ovelha que tinha alguns pedaços da lã arrancadas por mordidas. Não tinha certeza se os cães haviam atacado a ovelha, ou se estavam latindo apenas por desconfiança ou para alertar que ela estava doente. Mas ele não podia ter certeza, e nunca teria. Não podia mais confiar nos cachorros. E se atacassem mais alguma de suas ovelhas? Pior, e se atacassem um cabrito de algum vizinho? Ou ele próprio? Mesmo sem certeza, sacrificou os cachorros. Preferia ter dado um tiro em suas cabeças, mas estava sem munição para a espingarda, então enforcou um dos cães e decidiu manter vivo o outro. Mas só pra garantir lhe deu uma tremenda duma surra. Tão bem dada que o bicho ficou débil, mal conseguia caminhar e não obedecia mais nenhuma ordem. Então, por pena, enforcou ele também.
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