O Cidão andava com dificuldades para administrar a vida. No início ele até que tentou colocar as cartas na mesa, contar a real para a Dê, dizer que era comprometido, o casamento não ia bem, um questão de meses apenas. Iria ganhando tempo até ela se apegar a ele e entender a situação, que uma união matrimonial não se desfaz assim, como quem troca de canal, e que o amor deles, apesar de sincero e verdadeiro, precisava de um certo tempo para vingar na sua total plenitude.Mas no dia em que ele pretendia encaminhar o assunto, pelas beiradas, para sentir o clima, veio a Dê com a história de uma amiga que descobrira que o namorado era casado. A Dê, a bem da verdade, vinha alterada como se a bronca fosse com ela, e das poucas e boas que disse sobre as providencias a tomar, se fosse ela a vítima de tamanha sordidez, era esperar o calhorda dormir e lhe passar uma navalha no querido.
Um arrepio imenso, da meninge ao cóccix, desceu pelas costas do Cidão e ele achou mais prudente ir levando a coisa assim como estava, de forma ainda um tanto perigosa mas com uma certa segurança. E como se não bastasse, a mulher do Cidão, a Dani, era exigente e tinha mania de datas. Um das quais, para desatino do Cidão, era o Dia dos Namorados, que jamais ela deixava passar em brancas nuvens.
Foi assim que ele e a mulher combinaram um jantar romântico para comemorar a data. No meio da tarde, o Cidão telefonou pra Dani, disse que estava com problemas com a petição de um cliente e só chegaria em casa por volta das onze. O jantar com a Dê, sob o argumento de que estava com a mãe doente, ele marcou para às oito, na casa dela. E com o Fraga, seu melhor amigo e sócio no escritório, combinou um telefonema às dez e meia, quando o amigo lhe deveria transmitir a trágica notícia de que sua mãe (que o ele matara de desgosto ainda na juventude) acabava de ser hospitalizada.
Vai daí que o tempo foi passando, a Dê subindo paredes e querendo jogo e mais jogo, o Cidão preocupado com o relógio e nada de o Fraga ligar como o combinado, o que só veio a acontecer por volta de uma da manhã. O amigo pedia desculpas, tinha acontecido um blecaute na Zona Norte e ele ficara preso no elevador por duas horas, num lugar onde o celular não dava sinal algum.
O Cidão quis se irritar mas logo se deu conta de que poderia usar o contratempo do Fraga como uma ótima desculpa junto a Dani para justificar o atraso. Só que chegou em casa e ela ainda não havia a chegado. Uns cinco minutos depois é que a Dani apareceu, ofegante e jeito de assustada.
- Desculpe, amor! - ela disse.
Em princípio, e a bem da verdade, o Cidão achou aquele pedido de desculpas o máximo e até ficou com um certo peso na consciência em relação a Dê. Se soubesse que ia ser assim, teria relaxado e aproveitado mais os momentos que passara com ela. E de quebra, a Dani ainda lhe pedia desculpas.
- Tudo bem - ele disse, a cara fechada.
- Faz tempo que você está esperando, amor? - perguntou ela.
- É... bastante... Consegui resolver aquele problema da petição... e até vim mais cedo pra casa...
O Cidão que, além de não ser santo levava um certo jeito na arte da representação, decidiu valorizar o episódio e ficou na dele.
-Desculpa, amor! - ela insistiu, lhe acariciando o rosto.
- Tudo bem... - disse ele, disposto a não esticar muito a corda. - Tudo bem, esquece...
- Não foi culpa minha, amor... - continuou ela, solícita e submissa. - Passei rapidinho na casa da Paty e dei azar.
A Dani falava e agitava as mãos, enquanto andava de um lado paro o outro.
- Houve um blecaute na Zona Norte e fiquei trancada duas horas no elevador.
O Cidão deu um pulo do sofá.
- Tá bom, amor, tá bom! Já sei o que você está pensando... Eu não liguei porque o elevador parou num vão onde não pegava o sinal do celular...
O Cidão cerrou os punhos, disposto sabe-se lá ao quê, e ela ainda disse, ao perceber a iminência da tragédia:
- Juro pela saúde da minha mãe, amor! Não tinha nenhuma barrinha de sinal!
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