a. GuilhermeEra um cara como qualquer outro. Um pouco mais magro que a maioria, mas ainda assim sem nada de diferente. Nem o pomo-de-adão saltado, que lhe valera o apelido de Bola Onze, o fazia se destacar. Ele não percebia nada disso, e se percebesse não se importaria. Era só mais um cara.
Não era feliz. Melhor: era tão feliz quanto qualquer outro. Um pouco mais sorridente do que a maioria, mas isso não quer dizer nada. Ele percebia que não era feliz, mas não se importava. Era tão feliz quanto o resto. Se preocupar com isso seria bobagem.
Trabalhava como contador, e isso era tudo o que nós e sua mulher sabíamos sobre ele.
b. Aline
Era mulher.
c. Guilherme e Aline
Guilherme comia um pão velho, que tinha cortado ao meio, passado catchup e posto para esquentar no forno. Aline secava a louça. Ele mastigava devagar. Antes de engolir o terceiro bocado ela já tinha terminado sua tarefa e estava sentada a seu lado. Olhava fixamente para suas mandíbulas, que trabalhavam determinadas a transformar os nacos de pão em uma pasta deglutível. Seus olhos caíram no prato junto com o pão, comido só até a metade.
Vai deixar isso aí? Aline quis saber.
Ué, vou, Guilherme respondeu.
Não tem vergonha na cara, é?
Tem idéia de como isso tá horrível?
Não é como. É quanto. Quaaan-to.
Pode ser. Mas tá ruim igual. Não dá pra comer.
Então por que fez?
Pra tentar comer pão velho. Não queria jogar fora.
E agora vai jogar fora do mesmo jeito.
Mas eu tentei, poxa.
Nhém-nhém-nhém, mas eu tentei, nhém-nhém-nhém.
Não começa, Aline. Não te fiz nada.
Deixa de ser bunda-mole.
Isso eu não sou não.
É. Bunda-mole e insensível.
Sou nada.
Sabe quanta gente está passando fome na África?
Tem gente passando fome aqui na esquina mesmo.
Ui ui ui, como tu é espertinho.
Pára com isso, Aline. Me deixa.
Assim se passaram vinte minutos, até que Guilherme se deixou convencer que a melhor solução seria entregar o que restara do pão velho para um dos mendigos das proximidades. Aline foi junto, sorriso falante no rosto. Quando tentou entregar o resto duro de pão para o mendigo, Guilherme levou um soco que raspou o nariz e o fez cair no chão. Aline o levantou antes que tomasse um chute e voltaram correndo para casa ainda escutando os gritos do mendigo. Não conversaram mais naquela noite.
No dia seguinte, Aline decidiu que se deixaria enrabar pela primeira vez.
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