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    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

O abraço

Terça, 18 de junho de 2002, 11h13



Quase toda noite, o pessoal da rua se reunia no bar do Primu's para se embebedar. Havia os bêbados veteranos, coroas aposentados ou sustentados pelos filhos que há muito já tinham feito seu mundo girar ao redor das doses de cachaça servidas pelo seu Ernesto. E havia a turma mais jovem, da gurizada que cresceu no bairro e, apesar das passagens rápidas pelo exército, cursos supletivos ou universidades, não dera rumo nenhum à vida e continuara ali mesmo. Alguns, como o Mané, tinham casado. Outros tinham emprego. Em geral, as duas coisas coincidiam. Ronílson era de todos o mais alienígena: se mudara para o bairro há pouco mais de um ano. Era uma cara nova, e ser aceito pelos demais implicava em uma rotina constante de provas de merecimento. Nas primeiras semanas, apesar de seus modos humildes e simpáticos, Ronílson tomou pau de todo mundo. Quando abria a boca para tentar participar de alguma conversa, levava pau por ser metido. Quando ficava quieto, tomava um cacete do mesmo jeito, por se fazer de coitadinho. Com o tempo, Ronílson aprendeu a revidar às provocações da gurizada do bairro. Era péssimo de briga, mas passou a responder as piadinhas e provocações com força bruta. Continuou apanhando por um tempo, mas logo foi agregando respeito à sua pessoa. Não se sentia muito à vontade com o apetite destrutivo daquele pessoal, mas tentava conviver com os hábitos do resto da turma numa posição tão passiva quanto possível. Ronílson queria ter amigos, e ser aceito pelos vizinhos trazia satisfação. A contragosto, acabava participando das brigas com gente de ruas e bairros próximos, dos jogos de futebol, das bebedeiras e pequenas depredações madrugada adentro. Não tinha emprego, nem namorada, e sua opção mais imediata era deixar-se levar pela rotina dos companheiros do bar do Primu's.

Naquela noite, ao se aproximar do bar, escutou gritos histéricos e gargalhadas. Havia uma concentração de pessoas maior que o comum amontoada entre as pequenas mesas de metal. Logo Ronílson detectou o centro das atenções e motivo das risadas: no centro do bar havia um bêbado. Não um bêbado comum, daqueles coroas que batiam ponto todo dia no Primu's. Era um sujeito desconhecido, careca. O rosto, mãos e braços eram vermelhos e inchados, cobertos de uma camada sebosa e reluzente. Os olhos estavam cheios de veias sanguinolentas. Descalço, vestia uma calça de moleton cinza e uma camiseta verde de mangas compridas. Não conseguia articular muitas palavras, mas estava praticando uma dança bizarra no meio do círculo de freqüentadores do bar, cambaleando grotescamente e murmurando um fiapo de melodia que ainda restava em seu cérebro carcomido. Todos riam muito e, cada vez que o bebum fazia uma gracinha, lhe alcançavam uma dose de canha num copinho plástico. Ele aceitava a recompensa com um sorriso enorme, bebia o trago e tentava abraçar a pessoa mais próxima, tentativa que era imediatamente repelida com um empurrão violento. Depois de tentar abraçar ou apertar a mão de mais algumas pessoas, e de cair no chão triste após cada evasão, ele decidia realizar mais alguma performance cômica. As risadas o premiavam com mais uma dose, depois da qual ele novamente decidia abraçar alguém, e assim o ciclo se repetia.

Ronílson também riu no começo, mas depois ficou deprimido com aquele espetáculo. O sujeito, cuja idade era impossível determinar, estava em estado terminal de alcoolismo. Ronílson sentou-se num canto e tomou sua cerveja.

O bêbado passou a dormir nas sarjetas e calçadas do bairro. As mulheres de vez em quando lhe deixavam pequenas porções de comida do lado de fora do portão. Quando não tinha álcool, ele sofria convulsões horrendas e começava a ganir de dor, até que alguém lhe fazia o favor de alcançar uma garrafa de pinga ou um resto de garrafão de vinho. Tão logo o bar abria, o bêbado entrava e começava seu espetáculo cômico, que o público remunerava com doses de cachaça.

A situação se repetia há duas semanas. Era um sábado e, depois de repelir uma tentativa de abraço do bêbado com um cotovelaço na boca do estômago, Cléber lembrou que sabia de uma festa no Belém Novo. Cinco pila com trago liberado. Às onze horas, toda a gurizada se enfiou num ônibus. Como sempre, todos sentaram atrás da roleta, pra descer sem pagar depois de ameaçar o cobrador de morte. Ronílson pagou a passagem e desceu pela frente. Naquela noite, estava se sentindo especialmente incomodado pela atitude dos companheiros. E dia após dia, torcia pra que aquele bêbado morresse de uma vez.

A festa era boa. A cerveja estava um pouco quente, mas tinha bastante mulher e o DJ tinha noção. Ronílson agarrou uma guriazinha. Apesar da irritação, estava aproveitando a noite. Até que um tumulto às suas costas o forçou a se virar. Cléber e Abner tinham se metido num quebra-pau. Ronílson não tinha a mínima vontade de defender os amigos, mas um deles olhou pra ele e pediu ajuda. Ronílson se aproximou e tentou acertar uns chutes em alguém. Não conseguia saber muito bem quem estava chutando. Meia dúzia de seguranças cortaram a multidão, imobilizaram os participantes da briga, soquearam um pouco seus estômagos e os jogaram pra rua. Ronílson, Cléber e Abner saíram correndo.

Sentaram numa parada de ônibus. Cléber estava com a cara bem bagunçada e só queria chegar em casa. Ronílson estava intacto mas puto da cara e com vontade de morrer. E Abner estava possesso, gritando coisas sobre matar gente. Amanhecia. Quando o ônibus virou a esquina, Ronílson pensou que logo estaria em casa. Mas ele errou.

Abner juntou um tijolo do chão e, mandando todo mundo se fuder, arremessou contra o ônibus. O pára-brisa explodiu sobre o motorista.

Um Chevette marrom passava no sentido contrário naquele momento. O carro parou, e de dentro dele saiu um baixinho de bigode que começou a xingar Abner por ter jogado o tijolo.

Abner respondeu e procurou outro tijolo pra acertar no baixinho de bigode.

O baixinho de bigode se inclinou pra dentro do Chevette e saiu de lá com uma pistola na mão.

Ronílson, Cléber e Abner começaram a correr enquanto o baixinho de bigode descarregava sua pistola.

Os três correram, correram e correram.

Depois de cinco minutos de corrida, sentaram no banco de uma praça. Abner estava rindo muito. Cléber não conseguia respirar. E Ronílson sentiu sua perna um pouco molhada.

Levantou a calça e viu um pequeno furo. Uma bala tinha entrado pela batata da perna. Procurou um segundo furo do outro lado, mas não achou. Perto do joelho, havia uma saliência. Ronílson tocou, era a bala alojada.

Não doía.

Ronílson tirou um canivete do bolso. Enfiou a lâmina no joelho e cavocou até sair a bala.

E pediu pros amigos emprestarem uma grana, que ele precisava ir pro hospital.


***


No entardecer de domingo, com a perna enfaixada, Ronílson mancou até o bar do Primu's. Cléber e Abner estavam contando para os amigos e para os velhos bebuns de plantão sobre a aventura da noite anterior. Ronílson, com sua posição de destaque na história, foi recebido com cumprimentos de todos. Uma dose de respeito que até aquele dia ele nunca tivera. Mas ele não recebeu o respeito com satisfação. Sentou-se para pedir uma cerveja. Tinha vontade de pular em cima do Abner e esfaqueá-lo até a morte. E furar todo mundo que chegasse perto dele depois daquilo.

Interrompeu seus pensamentos ao ver o bêbado terminal entrar no bar. Sorrindo muito, o sujeito começou a dançar seu balé moribundo. O pessoal começou a bater palmas. O bêbado se desequilibou e caiu de bunda no chão. Alguém se aproximou dele começou a derramar um pouco de cachaça direto da garrafa em sua boca. Ele bebeu o que conseguiu. Levou uns dois minutos para se levantar e, como sempre, abriu os braços e mostrou os dentes, mendigando um abraço. Foi empurrado, e parou de pé nem na frente de Ronílson.

Ronílson tirou a mão de dentro do bolso, onde apalpava o canivete. Levantou-se e abraçou o bêbado. Ele fedia a álcool e um pouco de mijo, nada muito extraordinário. Depois de alguns segundos sem entender o que estava acontecendo, o bêbado também abraçou Ronílson. Todas as risadas cessaram. Ronílson disse "É isso ae, parceiro, dá um abraço ae". O bêbado aninhou a cabeça no peito de Ronílson, como uma donzela assustada. O abraço durou meio minuto. Ronílson afastou o bêbado, que se desequilibrou e caiu sentado no chão. O silêncio era absoluto no bar, e até o Ernesto saiu do balcão pra ver o que acontecia.

Ronílson saiu mancando e, sem se despedir de ninguém, foi pra casa assistir o Fantástico.

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