- Aquele maldito CD! - resmungou a Paty, quando o advogado lhe entregou os papeis para assinar o divórcio.Amigos novos e importantes, canto Gregoriano de fundo, vinho descendo redondinho, fondue de queijo no ponto, ambiente agradabilíssimo em frente à lareira, papo interessante, enfim, tudo correndo muito bem. Até que a Paty olhou para a estante e deu com um CD do Iranildo do Sax, escancarado à sua frente, ameaçadoramente à vista. Ela gelou até os ossos. Não só gelou como perdeu o fio da conversa por completo.
Precisava imediatamente impedir que o marido visse aquele disco. Aliás, não sabia como ele ainda não o havia visto. Se visse, seria vexame na certa.
Os dois casais já partiam para a quarta garrafa de vinho e o Márcio, o marido da Paty, era o que mais bebia. Principalmente por isso ela precisava fazer alguma coisa. Olhou outra vez para a estante e o disco estava lá: "Para Vigo Me Voy" e "Amapola", as duas faixas fatais.
Passado o primeiro impacto, a Paty esperava apenas uma oportunidade para agir. Foi quando a Bebel, dona casa, anunciou que estava na hora de mostrar as fotos de Miami e ordenou que o Valtinho pusesse mais lenha no fogo.A Paty, então, apenas espichou o braço e puxou o CD para dentro da bolsa. Na hora de sair acharia um jeito de largá-lo de volta em algum lugar, e pronto.
Respirou fundo, como se acabasse de sobreviver a um assalto a mão armada, e se aconchegou na maciez do sofá. A reputação parecia estar a salvo.
A Bebel voltou com as fotos:
- Miami é linda, gente! Vocês precisam criar coragem e ir também! O idioma não é problema, sabendo os números em inglês a gente se resolve.
- Quem tem boca vai a Roma - completou o Valtinho, sério e solene, saboreando bem cada palavra.
Aí a Bebel resolveu achar que aquele canto Gregoriano estava muito "dark" - era hora de ouvir uma coisa mais alegrinha, pra cima. E decidiu que iam ouvir o Iranildo do Sax. Primeiro procurou meio ao léu, depois revirou todos os discos, e o clima já era de constrangimento quando o Valtinho disse que há cinco minutos havia visto o disco em cima da estante. E que ninguém mais havia estado na sala, além deles.
Já sentindo o peso da suspeição vergar sobre seus ombros, a Paty resolveu falar a verdade e assumir todos os riscos. Explicou que Márcio, seu marido, era fissurado até a medula no Iranildo do Sax e, quando ouvia-o, principalmente "Para vigo Me Voy" e "Amapola", perdia por inteiro a noção de ridículo.
- É o maior vexame, gente!!!
Segundo a Paty o Márcio ficava como possuído, requebrava feito gay, se rolava no chão, gritava e sapateava, tirava até a roupa, tivesse onde estivesse. Da última vez... nem era bom falar...
A Bebel interrompeu-a, procurando ser gentil, até tentou fazer uma brincadeira, o Márcio poderia tirar a roupa sem problemas, eles não iriam se importar... Mas o Valtinho lhe deu um beliscão no braço e não foi mais possível evitar o clima de constrangimento que baixou sobre a sala, a partir daquele momento: o Márcio bêbado e ressentido, a Paty com a mais absoluta certeza de que não havia sido convincente, a Bebel e Valtinho fazendo voltas para não deixarem transparecer que não haviam engolido a desculpa dela para surrupiar o CD.
E o encontro, que era para ensejar uma nova e duradoura amizade, terminou assim: frio e cheio de palavras vãs, com desconfianças e ressentimentos de todos as partes.
Quando entravam em casa, o Márcio levantou os olhos para a Paty, pela primeira vez desde que ganharam a rua, e disse, cheio de mágoa:
- Então eu dou vexame, é...?
A Paty segurava-se para não chorar. E o casamento dos dois nunca mais foi o mesmo, até o dia em que assinaram o divórcio.
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