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DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br
Tiroteio
Terça, 02 de julho de 2002, 16h24
Eu tava no bar do Zé comendo uma coxinha de galinha e tomando uma cerveja, nada que eu já não tivesse feito antes. Havia, como de praxe, meia dúzia de pescadores bêbados atirados pelas mesas, uns rindo da cara de outros, outros jogando dominó, um último cambaleando entre as duas mesas de sinuca, coçando o rosto inchado. E meio que do meu lado, a pouco mais de um metro, um outro pescador, maior que todos os outros, mais feio que todos os outros, sacudindo graciosamente um carrinho de bebê dentro do qual havia um bebê. O carrinho era novo, o bebê era branquinho, limpo, sorridente e silencioso. Eu já tinha visto muita coisa estranha no bar do Zé pra me espantar com um carrinho de bebê com um bebê dentro, no meio daquele boteco escuro, velho, ocupado exclusivamente por homens rudes, grotescos, a maioria miseráveis, todos bêbados. Continuei mastigando minha coxinha. Mas a presença do bebê começou, finalmente, a me causar uma certa estranheza, e eu tirei os olhos do balcão para encarar aquele pequeno ser nos olhos. O pai também encarava a criança, com uma expressão bobalhona. Então eu olhei pro sujeito e falei uma coisa que eu nunca imaginaria a mim mesmo falando pra ninguém, muito menos prum pescador bêbado. "Que criança linda". Ele sorriu e se inclinou pra cima de mim, soltando um bafo alcoolizado e morno no meio do qual consegui distinguir o nome da menina, que já esqueci. Então ele começou a contar toda a história do nascimento da criança, era a segunda filha dele, a outra tinha cinco anos de idade, nesse tempo todo separando as duas a mulher dele tinha sofrido três abortos naturais, havia ficado doente, ele trabalhou feito um cachorro pra conseguir pagar todos os médicos e hospitais, mas que agora a filha dele tinha finalmente nascido, e que era muito esperta e muito linda e etc, e eu olhei pra ela no carrinho e notei que era mesmo uma das crianças mais lindas que eu ja tinha visto. O cara parecia fascinado em ter encontrado alguém pra escutar as coisas que ele tinha pra dizer, e depois de todos os detalhes do nascimento da filha começou a falar do resto da família dele, a mãe dele tinha tido cinco filhos, duas gêmeas e três trigêmeos, ele era um dos três e mais um monte de coisa, e eu comecei então a me sentir realmente desconfrotável, a coxinha não terminava nunca, a garrafa de cerveja não tava nem na metade, resolvi que eu queria sair dali mas não tinha como, não tinha coragem de cortar o cara, pedir pra ele parar de falar, e a menina no carrinho olhando pra mim com olhos arregalados, tão bonita e perfeitinha quanto num comercial de sabonete Fofo, o carrinho levemente embalado por aquele ser enorme, tão tosco que eu só compreendia uma em cada três palavras que ele me dizia, mãos grossas com dedos rachados, a pele parecendo folgada por cima dos músculos vigorosos. "Quer ver como ela é forte? Bota o dedo na mãozinha dela pra ver como ela aperta, quero ver tu soltar", ele me disse, e eu fui lá estiquei o indicador e coloquei na mão da criatura, ela não ligou muito, ignorou o meu dedo, ficou rindo sozinha, eu já não tava achando graça, eu tava desesperado pra sumir dali, engoli todo o resto da coxinha e comecei a beber a cerveja apressadamente, tirando uns trocos da carteira e ainda escutando o cara contar como a filha mais velha era inteligente, com cinco anos de idade sabia até atender telefone, sabia até tratar visita, assim que eu sequei a garrafa me virei e disse mais uma coisa eu nunca imaginei a mim mesmo dizendo pra ninguém, muito menos prum pescador bêbado, "Feliz Natal e um bom ano novo pro senhor", do alto da empolgação ele me respondeu algo parecido, sorriu, eu sorri de volta, nervoso, muito nervoso, sem saber o porquê daquele mal-estar, e saí de lá quase correndo, depois corri, como se estivesse fugindo de um tiroteio.
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