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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Binômio da irrealidade - Parte I

Quinta, 11 de julho de 2002, 14h11



O
custo
da
Desobediência


Na madrugada em que fiz 35 anos, decidi desobedecer o conselho da minha mãe, que sempre disse que a chuva lava tudo. Como se fosse a primeira vez da minha vida, e era, pus a cabeça para fora da janela e gritei de felicidade e deixei a água escorrer por cabelos, olhos, a face toda. Mas como a sabedoria das mães nunca deve ser desprezada, por castigo ou acontecimento, veio-me que no instante seguinte eu olhava esquisito para todos e, o mais estranho, via a mim mesmo. Via-me à direita e à esquerda. Via-me de frente e de lado, via-me de maneira conhecida e inédita, mas, principalmente, de baixo. Então ouvi a voz clara e próxima:

– Os seus olhos caíram no chão.

– Deixe de brincadeira – eu falei, mas quase não me entendi. A voz estava dentro da minha cabeça, mas também distante, como se não fosse mais minha. Voz de outro, pulimpolando por aí, mas não a minha doce vozinha. – Isso não é sério – eu percebi ao falar pela segunda vez que era mesmo minha aquela voz estranha e anasalada. Só não prestava tanto atenção à voz porque algo molhado me entrava pelo nariz e causava um incômodo tremendo.

– Não só os olhos. A sua boca também caiu no chão. E o nariz também. Caiu numa poça d’água, deixa que eu já tiro senão você se afoga – Lúcia me disse, com uma calma que parecia a coisa mais normal do mundo os olhos, narizes e bocas dos outros escorregarem e caírem no chão. Seria a mulher mais controlada do mundo se não estivesse sob medicação para ansiedade ou depressão ou euforia descontrolada.

– Vai ver – ela acrescentou – que descolaram. Você está molhado da chuva e todo mundo sabe que a chuva lava tudo. Nada pode com a chuva.

– Chuva, chuva, chuva, quem precisa da chuva? – eu respondi, olhando com um olho do chão para o rosto de minha irmã e o outro, em sua mão, para mim mesmo. Não via, porém, a boca que lhe falava e provavelmente continuava largada onde a água a levara.

De comum acordo, decidimos guardar tudo e procurar um médico. Com tudo guardado em um saco, pude perceber como tinha o hábito de salivar enquanto falava, quantos milhares de perdigotos que se lançavam perdidos no mundo quando recitava qualquer enunciado de Kant ou Voltaire e depois molhavam o olho alheio. Antes que saíssemos, no entanto, bateram à porta, "Ótimo, pode ser ajuda", disse minha irmã, mas quem entrou entrou pela sala foi um Dito Popular, perguntando se podia nos acompanhar.

– Mas de que me adiantará um Dito me seguindo por aí nessa situação? – eu perguntei, mas ele só me respondeu:

– Deus ajuda quem cedo madruga.

No táxi, só coubemos eu e o Dito, que de tão gordo ocupou todo o banco de trás, enquanto fiquei no banco da frente e minha irmã contrariada seguiu no ônibus 679, Grotão-Méier. O Dito explicou que ficou tão inchado à medida que surgiram novos Ditos Populares.

– A televisão contribui – ele me contou. – De seis em seis meses surgem novos ditos populares. Tá boa, Creuza?

– Quem é Creuza?

– Ninguém, só mais um Dito.

Mandei o táxi tocar para o frigorífico municipal, que é, todo mundo sabe, onde estão os melhores cirurgiões, aqueles que sabem que quando a faixa de gordura simplesmente atravessa o músculo é um tipo como chã de dentro e quando a mesma camada o envolve, é outro tipo, como patinho ou alcatra. Meus olhos puderam ver, ao sair do saco, que um destes doutores no momento se divertia com um cutelo, moldando um grande naco vermelho no formato do Portão do Inferno, de Monsieur Rodin, que ao lado dava dicas sobre como agir com as partes mais difíceis. Minha irmã me levou até ele, me arrastando a cada vez que me perdia e tentava ir em outra direção. O Dito nos seguia lembrando que quem ama o Feio, Bonito lhe parece.

– Mas vejo que não ouviste a tua mãe – ele me disse com um acentuado sotaque gaúcho. – Só um idiota não sabe que a chuva lava tudo.

– Água mole em pedra dura tanto bate até que fura – disse o Dito, arrancando um olhar de estupefação do cirurgião.
O cirurgião era parecido com Olavo Bilac, grandes bigodes com respingos de sangue seco e livros de anatomia servindo no chão para apoiar a mesa de cortar carne. Lâminas que cortam, dilaceram, esmagam, arrebentam, um exemplar de A Assustadora História da Medicina, ele explicou, porque todo mundo gosta de dar umas risadas para passar o tempo.

– Precisamos ser rápidos – acrescentou. – O tempo é precioso nessa situação.

– Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.
Passamos à sala seguinte, onde, além da mesa de cirurgia, havia um auditório com os melhores cirurgiões do mundo sentados bebendo chocolate quente e conversando em voz alta. Mas havia tantos médicos e nenhum enfermeiro, de modo que ninguém pôde ajudar naquela hora e combinamos que minha irmã iria auxiliá-lo, embora naquele momento ela estivesse embarcando em um vapor para o Cairo. Meu olho direito também iria ajudar, enquanto a boca, nariz e o olho esquerdo fosse colocados, e aí sim chegaria a sua vez. O Dito se prontificou a ajudar, mas Ditos não têm braços ou Pernas para cortar ou costurar. Minha irmã nos serviu um prato de sopa de inhame, pois existe um hábito eslavo de que é sinal de boa sorte, mesmo que ninguém nunca tenha ouvido falar nisso. Combinamos que ainda que fosse um ser independente no momento, minha boca aceitava ficar fechada para não atrapalhar a operação.

Na hora planejada, o médico açougueiro disse que eu deveria esperar e foi sala de preparação, lavou as mãos e depois embarcou para Japão, porque precisava se casar com uma gueixa. Podia pedir ajuda aos cirurgiões, mas todos eles naquela hora estavam em suas casas, fazendo as contas para manter o consultório. Meus olhos, boca e nariz foram de volta para o saco e nunca mais voltaram. Eu mesmo não saí do frigorífico, e em todos os aniversários minha irmã me visita e conta as últimas notícias do mundo, segurando no meu dedo mindinho e apertando a cada vez que começa a chorar. Fora isso, quem passa pela porta sabe que estou lá sentado também chora e olha piedoso para dentro e depois pede um quilo de filé no balcão do açougue, mas não pode fazer mais do que isso, pois não sabe costurar com a graça e habilidade de um cirurgião e de jeito nenhum aceita fazer o papel de gueixa para trazer o médico de volta ao trabalho inacabado.

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