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    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

Será numa quinta-feira

Terça, 16 de julho de 2002, 16h33



Será numa quinta-feira de vento frio, mas animada por um solzinho gostoso, daqueles que dá vontade ficar embaixo. Ela sairá de casa lá pelas nove horas da manhã como faz toda quinta-feira, depois de seis horas de sono e um banho apressado. Gastará os mesmos vinte minutos de sempre nas avenidas entupidas da zona norte, deixando-se levar automaticamente pelo fluxo letárgico dos carros, entre um e outro cruzamento coagulado, o semblante tedioso, e não lhe ocorrerá, como não ocorre a nenhum motorista, a vasta estupidez que significa o ato de entrar num automóvel e apostar a vida na roleta-russa do trânsito. Mas uma súbita sensação de equívoco, causada talvez pela visão da luz branda do sol tonalizando as folhas de uma praça, ou quem sabe por determinado verso de uma música no rádio, fará com que pouco antes de chegar ao hospital ela desvie do caminho de sempre e, sem razão aparente, conduza o carro por outras ruas, aleatórias e desconhecidas, até que alcance a avenida Beira-Rio e dirija despreocupada por seu asfalto impecável, livre de veículos no sentido centro-bairro. Percorrerá pela primeira vez toda a beira urbana do Rio Guaíba, encantando-se com a abundância de árvores e a quietude da Assunção, bairro de gente rica. Atravessará a Tristeza atenta às pessoas que transitam nas calçadas, um sujeito que quase se mata pra conseguir atravessar a rua, uma menina que passeia com um cachorro, um casal de namorados adolescentes do qual sentirá inveja, uma extensa fila na porta de um banco. Chegará ao calçadão de Ipanema como se este fosse o objetivo premeditado de seu desvio, e estacionará o carro. Caminhará sossegada pela calçada, observando as águas encrespadas do Guaíba que, embora sujas e levemente fétidas, inspirarão nela a tranqüilidade que sempre provocam no espírito as vastas extensões de água. Notará as pessoas que exercitam-se escutando walkman, as pequenas matilhas de cachorros de rua, a luz morna e plácida das dez horas da manhã que desenha sombras alongadas no chão diante de si. Sentará, depois de alguns minutos de caminhada, na mesinha Coca-Cola de um boteco solitário construído quase sobre a areia, ocupado apenas pelo dono e por um vira-latas adormecido no chão, e pedirá uma cerveja. Tomará um gole demorado e então, só então, será assaltada pela consciência de seu desatino, e questionará as razões de sua atitude - o que eu estou fazendo aqui? Como exatamente cometi a imprudência de ignorar o hospital e vir parar aqui do outro lado da cidade?, se bem que esta é a primeira vez que me sinto fazendo algo extraordinário em muito tempo, e o que acontece comigo que invejo o destino de todas as outras pessoas?, por que estou enjoada de minha própria vida?, é isso, fiz escolhas cedo demais, e hoje estou cansada, queria mudar, até mesmo este vira-latas diante de mim, ele me parece mais feliz, mais correto do que eu, esparramado debaixo do sol, a vida dele tem muito mais sentido, porque é mais simples, e pequenos momentos como este em que exercito minha liberdade, estes momentos são regra na vida deste cachorro, e são exceção na minha, não era pra ser assim, mas o que posso fazer?, não sei o que fazer essa é a verdade, vou ter sonhos de liberdade aqui nesta mesa de bar e logo logo vão retornar as vozes das minhas responsabilidades, o peso de todas as coisas em que me tornei e das quais não posso simplesmente fugir, e empurrada por este peso vou entrar de volta no meu carro, dirigir pro hospital, fazer com que tudo volte ao normal, nada desta sensação de liberdade restará até minha próxima fuga imprevista das coisas – e assim ela fará: pagará a cerveja, retornará ao carro, e dirigirá de volta à zona norte por um caminho diferente, o caminho de sempre.

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