O valor de
uma boa
refeição
Estão presentes o Guilherme Pai e o Guilherme Avô. Ainda dois Guilhermes Filhos e um Guilherme Neto. A mesa, quase toda ocupada por pratos, talheres e guardanapos. Cada um empunha garfo e faca e puxa para si um prato com biscoitos casadinhos e pudins, prontos para o ataque, quando entra na confeitaria doutor Adenovir. À exceção de Guilherme, foi médico de todos nós.
– Aí está uma grande família – diz o doutor Adenovir.
Eu sou o Guilherme, o Pai, aviso enquanto há tempo e volto ao doutor Adenovir, que se senta com todos. É gordo e sofre de diabetes, mas come doces sem parar. Termina o cumprimento e já pega um prato e enfia três biscoitos na boca. Por uns instantes ninguém fala nada, esperando que acabe de mastigar e continue a conversa, mas depois agarra outros três e começa a triturá-los com fúria.
– Mas então Adenovir – intervém Guilherme Avô, mesmo que o outro continue com a boca cheia e não possa responder – como vai a vida? A esposa?
– Comi ela no jantar ontem.
– Um garanhão, este Adenovir (dois tapinhas no ombro do médico). Mas vamos tomar cuidado com a linguagem. Há uma criança na mesa.
– Mas que linguagem? Só disse que comi a minha mulher. Foi a melhor refeição da minha vida. A carne da desgraçada era macia.
Um segundo e todos na mesa se olham, mesmo o Guilherme Neto, que ninguém sabe se entendeu direito. Um segundo e ele começa rir e repetir: Comeu a mulher, comeu a mulher, comeu a mulher.
– Viu, Adenovir? Diz Guilherme Avô. Agora ensinou besteira ao garoto. Essa história perde a graça rápido.
– Não vejo graça alguma. Trata-se do que estou dizendo. Comi Solange ontem. Com batatas e molho madeira, recheada com cenoura, calabresa e farofa. Um vinho tinto, para acompanhar.
– Mas... comeu, comeu?
– Comi. É claro que sobrou muita coisa. Se você quiser, passo na sua casa e deixo uma travessa.
– Adenovir, você perdeu o juízo? Matou a sua mulher?
– E você já viu alguém comer alguma comida viva? Isso é coisa de gente doente. Comigo, não. Não como nem peixe cru, essa frescura de japoneses. Comigo tudo tem que ser bem cozido. Pena que a Solange não pode me ajudar. Ela fazia molhos bons de doer.
– Mas isso é crime.
– Comer a mulher? Você está falando besteira sem parar hoje. Como se o marido não pudesse comer a mulher quando lhe dá na telha. De repente está com febre, me deixe ver a sua temperatura.
Com um salto, Guilherme se afasta. Adenovir fica com a mão parada no ar, um jeito desconcertado, mas depois recupera a dignidade.
– Então passe no meu consultório. Vou marcar uma hora. Se for ligar, insista, porque sou eu que tenho que atender o telefone.
– O senhor não tinha uma secretária?
– Tinha. Mas comi ela na semana passada. Não foi muito boa, devo acrescentar. Deu um pouco de azia, não foi como a Solange. Essa sim.
O garçom, que estava na mesa ao lado, se aproxima. Diz para Adenovir:
– Me desculpe, mas não pude deixar de ouvir. O senhor está dizendo que comeu a sua mulher?
– Comi.
– Meus parabéns.
– O que foi?
– Eu entendo senhor. Eu também adorei comer a minha mulher.
– É sério?
– Foi. A Selma era gorda. Deu pra muita coisa. Churrasco, picadinho, carne assada. Até toucinho.
– Toucinho. Uma grande idéia. Foi fazer um pouco também com o que sobrou.
– Se o senhor permitir, tem alguém que gostaria de conhecer o senhor.
Sai e volta com o maitre, um sujeito com cara de sonolento, que cumprimenta e abraça Adenovir.
– Muito prazer. Eu soube que o senhor comeu a mulher.
– É verdade.
– Posso saber como?
– Recheada.
– Excelente escolha. A minha eu comi com um molho ao vinagrete. Rendeu pouco. A Cléia, coitada, era mirradinha.
– Eu tenho um pouco ainda. Posso lhe dar.
– Muito obrigado, agradeço de coração, mas sou daquela ala que acha que cada esposa só pode ser comida pelo marido. Se o quiser, podemos trocar receitas. Eu e alguns amigos fizemos um clube culinário. Uma coisa discreta, pois não queremos muita gente. Sabe como é, temos que manter a seletividade.
Dá um cartão e sai. Calmamente, Adenovir põe três casadinhos na boca e os mastiga até o fim. Quando termina, cumprimenta a todos, mesmo que Guilherme avô recuse um abraço e Guilherme Neto tenha um ataque de riso e coece a repetir de novo: comer a mulher, comeu a mulher, comeu a mulher. Vai até a porta e volta.
– Como eu me esqueci? Sou um pateta. Guilherme (para Avô), tá aqui o seu convite. Me caso na semana que vem. Mas não se preocupe: são gêmeas. Na verdade, já falei com a minha cunhada e ela não se importou de ser servida aos convidados na recepção. Carne não vai faltar, carne não vai faltar.
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