» Página inicial

    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Binômio da irrealidade – Parte 2

Quinta, 18 de julho de 2002, 15h52



O valor de
uma boa
refeição


Estão presentes o Guilherme Pai e o Guilherme Avô. Ainda dois Guilhermes Filhos e um Guilherme Neto. A mesa, quase toda ocupada por pratos, talheres e guardanapos. Cada um empunha garfo e faca e puxa para si um prato com biscoitos casadinhos e pudins, prontos para o ataque, quando entra na confeitaria doutor Adenovir. À exceção de Guilherme, foi médico de todos nós.

– Aí está uma grande família – diz o doutor Adenovir.

Eu sou o Guilherme, o Pai, aviso enquanto há tempo e volto ao doutor Adenovir, que se senta com todos. É gordo e sofre de diabetes, mas come doces sem parar. Termina o cumprimento e já pega um prato e enfia três biscoitos na boca. Por uns instantes ninguém fala nada, esperando que acabe de mastigar e continue a conversa, mas depois agarra outros três e começa a triturá-los com fúria.

– Mas então Adenovir – intervém Guilherme Avô, mesmo que o outro continue com a boca cheia e não possa responder – como vai a vida? A esposa?

– Comi ela no jantar ontem.

– Um garanhão, este Adenovir (dois tapinhas no ombro do médico). Mas vamos tomar cuidado com a linguagem. Há uma criança na mesa.

– Mas que linguagem? Só disse que comi a minha mulher. Foi a melhor refeição da minha vida. A carne da desgraçada era macia.

Um segundo e todos na mesa se olham, mesmo o Guilherme Neto, que ninguém sabe se entendeu direito. Um segundo e ele começa rir e repetir: Comeu a mulher, comeu a mulher, comeu a mulher.

– Viu, Adenovir? Diz Guilherme Avô. Agora ensinou besteira ao garoto. Essa história perde a graça rápido.

– Não vejo graça alguma. Trata-se do que estou dizendo. Comi Solange ontem. Com batatas e molho madeira, recheada com cenoura, calabresa e farofa. Um vinho tinto, para acompanhar.

– Mas... comeu, comeu?

– Comi. É claro que sobrou muita coisa. Se você quiser, passo na sua casa e deixo uma travessa.

– Adenovir, você perdeu o juízo? Matou a sua mulher?

– E você já viu alguém comer alguma comida viva? Isso é coisa de gente doente. Comigo, não. Não como nem peixe cru, essa frescura de japoneses. Comigo tudo tem que ser bem cozido. Pena que a Solange não pode me ajudar. Ela fazia molhos bons de doer.

– Mas isso é crime.

– Comer a mulher? Você está falando besteira sem parar hoje. Como se o marido não pudesse comer a mulher quando lhe dá na telha. De repente está com febre, me deixe ver a sua temperatura.

Com um salto, Guilherme se afasta. Adenovir fica com a mão parada no ar, um jeito desconcertado, mas depois recupera a dignidade.

– Então passe no meu consultório. Vou marcar uma hora. Se for ligar, insista, porque sou eu que tenho que atender o telefone.

– O senhor não tinha uma secretária?

– Tinha. Mas comi ela na semana passada. Não foi muito boa, devo acrescentar. Deu um pouco de azia, não foi como a Solange. Essa sim.

O garçom, que estava na mesa ao lado, se aproxima. Diz para Adenovir:

– Me desculpe, mas não pude deixar de ouvir. O senhor está dizendo que comeu a sua mulher?

– Comi.

– Meus parabéns.

– O que foi?

– Eu entendo senhor. Eu também adorei comer a minha mulher.

– É sério?

– Foi. A Selma era gorda. Deu pra muita coisa. Churrasco, picadinho, carne assada. Até toucinho.

– Toucinho. Uma grande idéia. Foi fazer um pouco também com o que sobrou.

– Se o senhor permitir, tem alguém que gostaria de conhecer o senhor.

Sai e volta com o maitre, um sujeito com cara de sonolento, que cumprimenta e abraça Adenovir.

– Muito prazer. Eu soube que o senhor comeu a mulher.

– É verdade.

– Posso saber como?

– Recheada.

– Excelente escolha. A minha eu comi com um molho ao vinagrete. Rendeu pouco. A Cléia, coitada, era mirradinha.

– Eu tenho um pouco ainda. Posso lhe dar.

– Muito obrigado, agradeço de coração, mas sou daquela ala que acha que cada esposa só pode ser comida pelo marido. Se o quiser, podemos trocar receitas. Eu e alguns amigos fizemos um clube culinário. Uma coisa discreta, pois não queremos muita gente. Sabe como é, temos que manter a seletividade.

Dá um cartão e sai. Calmamente, Adenovir põe três casadinhos na boca e os mastiga até o fim. Quando termina, cumprimenta a todos, mesmo que Guilherme avô recuse um abraço e Guilherme Neto tenha um ataque de riso e coece a repetir de novo: comer a mulher, comeu a mulher, comeu a mulher. Vai até a porta e volta.

– Como eu me esqueci? Sou um pateta. Guilherme (para Avô), tá aqui o seu convite. Me caso na semana que vem. Mas não se preocupe: são gêmeas. Na verdade, já falei com a minha cunhada e ela não se importou de ser servida aos convidados na recepção. Carne não vai faltar, carne não vai faltar.

Leia a crônica anterior

Veja as notícias »


outros canais
  • Exclusivo!
    Televisão, moda, astros e babados
  • Notícias
    Tudo o que acontece no Brasil e no mundo
  • Esportes
    Notícias, fotos e cobertura de jogos
  • Revistas
    Para todas as idades e gostos
  • Copyright© 1996 - 2000 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved.