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    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

O interior da boca

Terça, 30 de julho de 2002, 16h44



A mãe do Eli vivia dizendo pra ele não brincar perto das grades do prédio, porque era muito perigoso, ele podia até morrer. Mas Eli gostava de escalar as grades dos fundos do pátio do edifício e ficar olhando para a rua que passava lá atrás, às vezes só pra observar as pessoas e o movimento, outras vezes para jogar iogurte natural ou bergamotas na cabeça das velhinhas que passavam na calçada abaixo. As lanças de metal brilhante que ornamentavam o topo das barras da grade não assustavam Eli, ele gostava de seu aspecto medieval, e da proteção que as pontas afiadas ofereciam contra os perigos da rua e a vingança das vítimas de suas bombas de iogurte.

Um dia o pé de Eli resvalou de seu apoio na grade e ele escorregou de modo a enfiar uma das lanças pontiagudas embaixo do queixo, com tal força e jeito que a seta metálica atravessou sua mandíbula e sua língua, ficando alojada no interior de sua cavidade bucal, pinicando o céu da boca. Foi tudo muito rápido, e na hora Eli só sentiu uma pontadinha, parecida com uma injeção. Não entendeu o que tinha acontecido até que tentou mover a cabeça e percebeu que estava presa. Em pouco tempo, sua boca se encheu de sangue, que começou a escorrer pelo canto dos lábios. Eli tentou gritar por ajuda, mas só conseguiu grunhir.

Após alguns minutos um homem de terno parou na calçada abaixo da grade e percebeu que Eli estava preso pela ponta da grade de proteção. A partir do alarme dado pelo homem, vários transeuntes detiveram seus rumos para contemplar a situação de Eli. Gritavam coisas pra ele, perguntando como o acidente ocorrera, se ele estava bem, se sentia muita dor, e Eli tentava responder que simplesmente escorregou, que até que estava bem, que a dor estava aumentando aos poucos, mas não conseguia, pois sua língua estava atravessada por um triângulo afiado de metal. Um rapaz anunciou que ia dar a volta no quarteirão para avisar o porteiro, uma mulher sacou o celular para ligar para o pronto-socorro e para os bombeiros, enquanto chorava e dizia para Eli ficar calmo.

Eli estava calmo, e isso o surpreendia. O que mais o enervava era o esforço que precisava fazer para que a ponta da lança não espetasse o céu de sua boca. Também estava ficando enjoado com o gosto do sangue quente que descia pela sua garganta. Engolir o próprio sangue causava uma sensação estranha. Como nunca antes, Eli sentiu que possuía uma língua, dentes, sangue correndo por veias em todo o seu corpo, sentiu o suor de suas mãos que apertavam as grades com força para manter a posição. Se deu conta pela primeira vez que todas essas coisas podiam ser rasgadas, destroçadas, destruídas por um leve deslize. O que aconteceria quando o tirassem dali, e como iam fazer isso? O que fariam com ele no hospital? A idéia de ter língua amputada, ou levar dezenas de pontos nela, pareceu algo extremamente bizarro, algo que há três minutos ele nunca pensaria que podia acontecer com ele, ou com qualquer pessoa nesse mundo. Mas agora ele via como era fácil arrebentar o próprio corpo, e como a situação dele era estúpida. E ainda falavam de Deus no colégio. Desde que começara a estudar as professoras o forçavam a ler a Torah e falavam de Deus pra tudo que é lado. Ele demorou até a terceira série pra se convencer de que aquilo tudo podia ser levado a sério, mas agora, com a cabeça espetada na grade como um churrasco, estava pronto para esquecer tudo de novo. Que lixo. Bem que podia ter morrido de uma vez. Se caísse com um pouco mais de força, talvez a ponta da grade tivesse atravessado o céu da boca, subido por trás do nariz, pelo meio da cabeça, até o cérebro, e aí já era. Eli teve vontade de ser poupado da dor que aumentava cada vez mais e decerto chegaria a níveis horrorosos um tanto mais tarde, do ridículo daquela situação, das coisas certamente desagradáveis pelas quais passaria no hospital, da sensação de não conhecer mais o interior de sua boca, da expressão de sua mãe, que viria primeiro com aqueles "eu não disse?" e mais tarde, piedosa, com uns "tudo bem, foi um acidente, não foi culpa tua meu filho".

Eli sentiu que alguém segurava sua cabeça com a mão. Só então viu que um bombeiro estava à sua frente, sustentado por uma escada. O homem disse pra ele ficar calmo e tentar abrir a mandíbula o máximo que conseguisse, que ele serraria a ponta da grade por dentro da boca de Eli. Eli obedeceu, e virando os globos oculares pra esquerda (ele já não pensava mais em seus "olhos", e sim nos seus "globos oculares") enxergou a mãe lá embaixo na calçada, no meio de uma multidão de observadores apavorados. Ela falava e gesticulava, mas ele não entendia direito. Fechou os olhos e, num pensamento involuntário, imaginou como seria se tocasse um pote de iogurte na cabeça dela neste exato momento. Não conseguiu conter uma breve golfada de riso. O bombeiro começou seu trabalho.

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