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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Deja vu

Quinta, 01 de agosto de 2002, 16h02



O relógio tocando, Wilson se levantou às oito em ponto. Correu até o banheiro, jogou água no rosto e pegou a roupa que estava jogada em cima do bidê. A barba eu faço depois, disse para si mesmo. Pelo corredor do prédio, apressado, mastigou uma torrada para enganar a fome, enfiou uma maçã no saco de papel e ouviu o elevador subindo e rangendo. Então, quando a porta se abriu, ouvindo o grito assustado de dona Virgínia, do 701, e sentindo uma rajada de vento do ar condicionado, percebeu. Estava sem as calças.

O relógio tocando, Wilson se levantou às sete e meia. Como gostava de fazer, preparou uma tigela de cereal e levou para a cama. Abriu a janela e leu como uma bota traiu os caras de A Sangue Frio. Na hora em que devia se levantar, o despertador tocou de novo. Tomou um banho mais demorado do que o normal. “Tenho tempo”, pensou. “Já tomei o café”. Quando saiu, olhou o relógio. Estava um pouco atrasado, mas ainda tinha tempo, então se demorou à frente do espelho. Encontrou um cravo difícil de arrancar e escavou o próprio rosto sem muito cuidade, até extrair a gosma branca na ponta do dedo. Um lembrete mental: preciso pesquisar se o cravo é mesmo um aracnídeo. Estava mais atrasado ainda, porém ainda se demorou escolhendo se o tênis que iria usar era o azul ou o cinza. Experimentou os dois, mas se decidiu por um preto. Correndo pela rua, sentiu uma rajada de vento e os olhares de quem passava. Pisou numa poça e a água gelou-lhe os pés. Percebeu. Estava descalço.

O relógio tocando, Wilson se levantou às oito e correu para o chuveiro. A meteorologia previu dois graus, uma camada de neblina cobria as antenas de TV no morro em frente. A água quente o fez sentir uma sensação boa. Decidiu que era uma ocasião especial, então encheu a esponja do sabonete líquido caro que Verônica deixou no apartamento. Estava ensaboado e cantando uma canção do Roberto quando a água ficou gelada. A fiação era antiga, não suportava o chuveiro. O disjuntor desarmou. Enrolado numa toalha, caminhou deixando poças d’água pelo caminho até o disjuntor. Voltou ao banheiro, abriu de novo o chuveiro e mal tirou o sabão, o disjuntor desarmou de novo. Xingou um palavrão. No meio da neblina, a caminho do trabalho, mal viu as pessoas passando e os lugares. Numa placa, leu o nome da rua, mas não era a rua do escritório. Tentou pedir informação a uma mulher, mas ela apertou o passo, quase correu. Lembrou: perto tem uma praça. É só achar a praça e fica tudo bem. Andou na direção onde achava que a praça estava. Passaram dez, quinze, vinte minutos e viu outra placa, outro nome de rua. A neblina baixou um pouco e notou em frente uma igreja antiga, com uma fachada de tijolos. Olhou as torres manchadas de mofo, um sino enferrujado no campanário. Não conhecia aquela igreja. Nem sinal da praça. Percebeu, estava perdido.

O relógio tocando, Wilson cobriu a cabeça com o edredon e o travesseiro. Então não agüentou mais o barulho, apanhou o relógio e o atirou com força na parede. Nem prestou atenção no barulho de molas e engrenagens se espatifando na parede e dormiu o melhor sono de sua vida.

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