Eu tinha treze ou quatorze, ela também. Dânica, ela se chamava. Não queria dizer nada. Mas ela tinha suas teorias, adorava falar sobre isso. Eu ouvia."Já te disse, né? Dânica vem do povo que povoou a Dinamarca, os dânicos." Um gole de milkshake. "Vieram depois dos anglos. Ou dos saxões. Ou antes. Agora eu não sei. Minha mãe viu em uma enciclopédia."
"Viu errado, então, porque quem povoou a dinamarca foram os daneses." Um gole de milkshakespeare. "Na Dinamarca tem o Hamlet e Lego. Nenhum dânico. Vi no dicionário ontem."
Ela ainda teve a presença de espírito de dizer "dane-se", mas tecnicamente havia sido nossa primeira briga. Azar também, alguém um dia ia dizer para ela que ela estava vivendo uma mentira.
"Tu estava vivendo uma mentira!"
"Eu sei, eu sei. Minha mãe já me explicou de novo. É dânico de algo que causa dano, prejuízo, que danifica. Uma coisa dânica, má, ruim. Não que eu seja má, ruim".
Ela estava errada de novo. O dicionário só falava em "danífica". Eu até ia deixar passar, mas quando ela começou a usar a palavra no dia-a-dia foi insuportável. "Como é dânica para a economia essa especulação em torno do dólar, né, mor?"
Paramos de nos ver. Mas não resisti e liguei para ela alertando da nova confusão com o nome. Cara, eu era muito chato. Mas alguém precisava dizer para ela que ela estava vivendo uma mentira. De novo.
"Tu estava vivendo uma mentira! De novo."
Dessa vez ela não tinha nenhuma resposta pronta. Estava sem origem, a pobre, desraizada. Um nome que não queria dizer nada. Para ela, era como se ela não significasse coisa alguma. Tentei consertar mandando um cartão dizendo que dânica era linda, maravilhosa, divina e graciosa, bonita e gostosa, mas ela rasgou chorando quando viu de quem era. Vi tudo da outra calçada escondido atrás da lixeira. Quando ela jogou o papel rasgado no chão gritei "porca!, sujando a rua". Meu, eu era muito chato.
Fui encontrar ela noite dessas em uma casa noturna. Reparei que as amigas chamavam ela de Dani, a consumação também. E eu ali, alcoolizadamente pensando: "bah, que afudê, a guria mudou de nome por minha causa! E periga eu pegar ela!". O lance era confeir. Cara, o que eu tenho de chato eu tenho de cafajeste.
"Dani, só para ter certeza, tu não guarda nenhum ressentimento daquelas vezes em que tu dizia que o teu nome queria dizer uma coisa e eu dizia que não queria dizer nada, né?"
"Ressentimento? Não, isso se chama pena".
O rancor é meu motor.
"P... p... p... pena? De mim?"
O ódio é meu sódio.
"É. Porque com aquela agressão gratuita tu só mostrava o quanto tu era inseguro e imaturo - e provavelmente ainda é - com relação às mulheres".
A raiva é minha seiva.
"De forma que tudo que eu poderia ter contra ti se converte em pena."
E cara... eu sou muito chato.
"Pena? Vem com esses papinho de terceiro semestre de curso de psicologia, querendo dar de superior! Tu que inventava umas cascata de origem do teu nome, agora vem querer dizer que eu que era inseguro? Podia muito bem dizer que Dânica era original, que o som era bonito, que era um nome novo e sei lá mais o quê, mas passava só imaginando um jeito de ser como os outros! Ora, pois pega essa tua pena e enfia no travesseiro!"
E ainda peguei a consumação da mão dela e caneta de um garçom que passava e pus lá o circunflexo, o "C" e o "A". Dânica.
E fui pra casa.
Imaturo, eu, faz-me rir.
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