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    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

O Porco

Terça, 13 de agosto de 2002, 16h57



Parte 1

Afrânio foi jubilado no curso de Jornalismo, depois de oito anos jogando sinuca no diretório acadêmico. Não tinha jeito pra escrever notícias. Expulso da moradia estudantil, reuniu suas economias e decidiu ir para Londres só de ida, pra fazer como tantos faziam, arranjar um emprego num balcão ou numa empresa de construção, ganhando doze libras por hora de trabalho. A cada ano poderia reunir uma graninha e mudar de país. Conheceria toda e Europa, quem sabe pudesse casar com uma tcheca. Claro que nada disso aconteceu. Sem saber inglês, sem habilitação alguma e sem jeitinho para arranjar trabalho clandestino, Afrânio agonizou durante cinco anos no velho mundo, sobrevivendo de favores, caridade e ultrajantes empregos temporários.

Conseguiu retornar ao Brasil num vôo de carga, e chegando aqui já era um adulto frustrado e entristecido. Os amigos que não haviam desaparecido e que ainda se lembravam de Afrânio eram agora profissionais de sucesso, que até concordavam em tomar uma cerveja com ele, mas não conseguiam dissimular seu constrangimento.

Afrânio era um sujeito do tipo romântico, o que além de fazer dele um suicida potencial, resultava numa total falta de jeito para implorar por um subemprego que garantisse sua sobrevivência. Acabou num posto de gasolina, lavando e encerando carros, trocando óleo, aquelas coisas. A vida deu sinais de que valia a pena quando ele conheceu uma atendente das lojas C&A no centro que concordou em tomar uma cerveja com ele na saída do expediente, e não só isso, aceitou um segundo encontro, e aceitou posteriormente que ele aparecesse de vez em quando na loja pra boliná-la no provador. Afrânio pensava na possibilidade do primeiro namoro de sua vida quando foi despedido do posto de gasolina devido ao desleixo e falta de jeito pra lidar com carros.

A solução era gastar o pouco que tinha ganhado em cerveja, já que todo o resto parecia inatingível. Havia somente a atendente, que a esta altura cedia a ocasionais encontros no minúsculo apartamento onde Afrânio morava e cujo aluguel já devia. Mas um dia ela admitiu que tentou gostar dele e não conseguiu, ele bebia demais, não trabalhava, era meigo e tudo, mas tinha pouco jeito pra lidar com mulheres, ela estava infeliz, adeus Afrânio. Afrânio já estava cansado de não ter jeito pras coisas.

Nesta noite, foi até um bar (era sempre um bar diferente, ficava devendo um pouco em cada), pediu uma cerveja e concluiu que não tinha jeito pra vida. Ele ainda não tinha resolvido se matar. Tinha cerca de 150 reais, uma reserva derradeira que ele não gastava nunca, uma técnica de sobrevivência desenvolvida em suas errâncias pela Europa. Afrânio precisava decidir o que fazer com esse dinheiro. Parecia insuficiente para reconstruir uma vida, mas podia ser bem aplicado num último ato de desespero, de revolta, de protesto contra o mundo. Ele ainda não tinha pensado em suicídio. O velho trouxe a garrafa de cerveja e colocou diante de Afrânio. Quando foi servir o copo, o líquido entrou num rápido e inapelável processo de congelamento, bem na mão de Afrânio. Ele ficou uns vinte segundo olhando atônito para a garrafa, e então teve um insight. Um suicídio, mas não um suicídio qualquer. Um porco. Subir na cobertura do mais alto prédio do centro da cidade. Olhar lá de cima para a multidão que se esbarra pela mais movimentada calçada. Agarrar-se ao porco e saltar, com os olhos bem abertos e soltando gritos ensandecidos. Antes de atingir o chão e unir-se ao porco numa explosão de entranhas, teria ainda a chance de olhar fundo nos olhos de um último ser humano, qualquer um, olhos vibrantes de terror, e enxergar por trás deste absoluto terror todo o absurdo da vida. Um anjo caído, um anjo e seu porco gigantesco trazendo ao chão a ausência de motivos, a perplexidade, a arbitrariedade da existência. O que poderiam dizer os jornais? Como as testemunhas daquela cena poderiam contar, em casa, para um filho depois de um dia de trabalho, o que viram acontecer naquela tarde? Afrânio deixaria bem claro que não era somente ele que não tinha respostas pra vida. Ninguém tem, ninguém poderá ter depois de saber que um homem solitário, derrotado, de trinta e poucos anos de idade, atirou-se de um prédio sobre a multidão. Agarrado a um porco.

Afrânio não sabia por que exatamente um porco, mas tinha que ser um porco e somente um porco, mais nada.
Ao pagar a cerveja, interrogou o velho que mascava um palito atrás do balcão.

– Um porco. Um porco? Você quer comprar um porco? Um porco vivo?

– Sim, vivo.

– Deixa eu ver. Acho que só fora da cidade. Um amigo da minha mulher cria ovelhas em Charqueadas, a meia hora da cidade. As pessoas criam bichos por lá. Eu procuraria naquela região.

O porco em si não seria difícil de encontrar. Havia dois outros problemas muito mais graves, que ocuparam os neurônios eufóricos de Afrânios durante algumas horas. Era preciso arranjar um jeito de trazer o porco. E era preciso arranjar um jeito de levar o porco até a cobertura do prédio. Nada fácil. Mas Afrânio estava convicto. Desta vez a vida ia dar uma ajudinha, o próprio Criador devia estar achando graça disso tudo, e decerto estava louco para assistir ao espetáculo tragicômico desta sua sofrida criatura. Ele ia mexer uns pauzinhos.

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