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    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

O Porco - Parte 2

Terça, 20 de agosto de 2002, 16h09



Afrânio foi de ônibus até Charqueadas. Parou num posto de gasolina na beira do asfalto e conseguiu rapidamente a informação que desejava. O seu Ermírio criava alguns porcos. O seu Ermírio morava a dez minutos de distância, depois de uma estradinha de terra. Afrânio foi a pé. Ao atravessar a porteira, foi cercado por quatro cachorros enormes e subnutridos que latiram furiosamente ao redor dele. Afrânio caminhou vagarosamente na direção da casa de seu Ermírio, acompanhado pelos cães. O seu Ermírio apareceu e calou os bichos com um monossílabo. Era velho um homem da campanha, com pele de couro e mãos rachadas.

– Eu quero comprar um porco. Sim, vivo.

Os porcos de seu Ermírio transitavam livremente pela pequena propriedade. Cerca de uma dezena deles, gordos e afobados, chafurdando a terra molhada à cata de guloseimas, frutas podres, resíduos orgânicos inclassificáveis, mas que para os porcos significavam a mesma coisa que um bife à cavalo: comida. Uma porca enorme surgiu do meio de uns arbustos, acompanhado de um séquito de leitões agitados. Um brilho surgiu do centro das olheiras de Afrânio. Eu quero o maior deles.

– O maior? O senhor me acompanhe.

Foram ao chiqueiro. Um porco descomunal dormia ocupando um terço de sua pocilga. Despertou com o barulho dos humanos e levantou com dificuldade. Recolheu-se no fundo da pocilga, assustado, caminhando de um jeito esquisito.

– Foi castrado há pouco – explicou seu Ermírio.

– Eu quero esse. Quanto?

O dobro do que Afrânio possuía. Tentou barganhar, mas seu Ermírio era irredutível. Afrânio revelou quanto dinheiro tinha, e seu Ermírio coçou o queixo, deixando escapar uma risada. Mas de repente pareceu ter uma idéia. Conduziu Afrânio ao fundo da pocilga, onde havia um outro porco, muito grande.

– Tá velho, e um pouco doente. Não serve mais pra nada. Esse eu vendo por setenta pila.

Afrânio encarou o suíno, que parecia pouco interessado na presença de humanos. Parecia, é verdade, pouco interessado em qualquer coisa. Um animal decadente, de aspecto paquidérmico. Grande o suficiente pra partir um ônibus ao meio depois de uma queda de vinte andares. Era perfeito.
O problema, agora, era transportar aquele ser vivo até a cidade. Seu Ermírio tinha uma camionete, e Afrânio pagou um adicional para que o velho desse carona até a cidade. Além disso, prevendo dificuldades futuras, solicitou que o porco fosse muito bem amarrado, patas e focinho, e depois colocado dentro de um saco.

No trajeto em direção à cidade, Afrânio pensou de que jeito conseguiria levar o porco para a cobertura do prédio. O prédio ele já havia escolhido, era o mais alto da cidade, no coração do centro, um edifício comercial antigo recheado de lojas, escritórios, sedes de sindicatos, consultórios e gente para quem a vida valia a pena ser vivida. Seu Ermírio não falava, embora não faltasse vontade de fazer perguntas. Desde cedo aprendeu a não se envolver mais do que o necessário com gente da cidade.

Entrando na cidade, passaram pela rodoviária. Afrânio pediu que dessem uma paradinha. Procurou um carregador de malas e disse que precisava de um carrinho. O carregador desconversou, mas Afrânio ofereceu todo o dinheiro que lhe restava. O carrinho não pertencia ao carregador, pertencia à rodoviária, ele não podia vendê-lo. Mas então que dissesse que foi roubado! Afrânio disse isso e estendeu o maço de notas, seu último vínculo com a vida que estava prestes a deixar. O carregador meditou muito. Num recôndito pouco movimentado da rodoviária, entregou o carrinho a Afrânio.

Seu Ermírio ajudou a descarregar o carrinho e o saco na calçada, diante do prédio. O porco, desnorteado, pouco se movimentava, e vez que outra produzia algum ruído inaudível no caos urbano. Com dificuldade, acomodaram o saco sobre o carrinho. Seu Ermírio cumprimentou Afrânio rapidamente e desapareceu com sua camionete.

Aproximava-se o fim da tarde, momento ideal: milhares de empregados e estudantes começavam a sair de seus locais de trabalho e estudo, abatidos, cansados, loucos pra chegar em casa. Entrou no prédio, empurrando o carrinho na direção do elevador de serviço. Foi interceptado pelo guarda. Era preciso passar pela portaria. O zelador perguntou o andar. Agora era o momento em que o Criador precisava acordar na platéia e fazer sua parte para garantir o prosseguimento do espetáculo.

– Vinte – chutou Afrânio.

– Só tem dezenove.

– Então é isso. Dezenove. A entrega é pro último andar.

– Número?

– Er... 1902.

– De onde?

Momento propício para uma intervenção divina.

– Diga apenas que a encomenda chegou.

O zelador não hesitou. Apertou o botão e informou que a encomenda chegou.

– Pode subir.

Afrânio dissimulou sua euforia. Conduziu a si mesmo e ao porco em direção ao elevador de serviço. Agradeceu a Deus, cinicamente, pois era ateu. Subia agora ao seu paraíso. Aproximava-se do palco de última e maior realização. Sua única realização. O porco, único cúmplice, gemia dentro do saco.

Do décimo-nono, uma rampa levava ao terraço da cobertura. O sol descia placidamente em direção ao horizonte, e pombas rodopiavam entre os prédios. Afrânio encostou o carrinho perto da murada de proteção e, com todo o cuidado possível, depositou o porco no chão. Há tempos o bicho já havia desistido do esforço inútil de se contorcer. Olhando lá pra baixo, Afrânio viu o fluxo atropelado da multidão de carros e pessoas, e vislumbrou as conseqüências desastrosas de sua gloriosa queda. Talvez levasse uns dez ou doze consigo no momento do impacto. Talvez atingisse em cheio um automóvel, junto com seu porco, tornando o estrago ainda mais indescritível. O encerramento perfeito para sua vida lamentável. Tinha jeito pra alguma coisa, enfim. A gravidade não escolhe objetos.

Hora de tirar o porco do saco. Afrânio desatou o nó e puxou o saco com toda a força, fazendo o porco escorregar pra fora. As patas e focinho estavam fortemente amarrados. Era uma condição cruel. Desfez os outros nós. Libertou primeiro o focinho. O porco grunhiu imediatamente, em protesto. Parecia insultar Afrânio pela sacanagem que tinham feito com ele. Afrânio soltou os pés do porco. Por um instante, temeu que o animal pudesse atacá-lo enfurecido. Mas, após libertar completamente o porco, percebeu que o bicho estava tão debilitado e exausto que mal conseguia colocar-se em pé. Teve um pouco de pena. O porco arrastou-se, desajeitado, tropeçou em círculos e voltou a deitar, com seu olho muito aberto, respirando intensamente.

Sentado sobre o carrinho, Afrânio olhou a paisagem de prédios avermelhados pela luz do crepúsculo, que se estendia por quilômetros. Como diabos ele ia conseguir agarrar e levantar um porco de muitas dezenas de quilos, e ainda conseguir arremessar-se junto com ele por cima da murada, em direção a uma morte espetacular? Como não havia passado por sua cabeça a impossibilidade física dessa manobra? O porco pesava no mínimo o dobro que ele. Sua situação ridícula só era possível devido a uma combinação de obstinação, derrotismo e burrice, como todo o resto da sua vida. Ah, e é claro, o empurrãozinho de Deus. Filho da puta comediante que não existe.

Afrânio olhou para o suíno, e viu que este também estava olhando pra ele. Uma expressão quase humana, que parecia condená-lo por aquele rapto canalha, mas ainda assim com uma ponta de compaixão, um olhar de cumplicidade que continha uma possibilidade de perdão. Era o olhar mais cúmplice e humano que Afrânio já compartilhara com um ser vivo, o olhar deste porco doente, velho, que tinha sido carregado por ele, amarrado, até a cobertura de um prédio. Afrânio leu em algum lugar que o porco é o animal que mais divide genes idênticos com o ser humano. Mais que os chimpanzés. Deve ser verdade mesmo. Agora havia um céu vermelho que algumas estrelas ocupavam sorrateiramente. O porco olhou para a cidade, não parecia estar entendendo muito bem o que via. É uma cidade, explicou Afrânio, e aqueles lá embaixo são seres humanos. Um bando de putos. Se tivesse um cigarro, Afrânio o acenderia agora e contemplaria também a cidade, contando sua vida para o porco, que escutaria, e saberia ficar em silêncio nas horas certas e dizer "é foda..." a cada momento trágico... boa companhia, o porco. Tu acredita em Deus, porco? Eu também não.

Afrânio deu um tapa na bunda do porco, que roncou. Riu sozinho. Não ter jeito pras coisas já não parecia algo tão terrível.

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