Minhas frustrações, ordem randômica: não nasci no Rio de Janeiro em 1945; não sei tocar nenhum instrumento; não guardei uma mochila de lona muito bala que eu tinha; nunca tive nada com uma japonesa (uma descendente, uma oriental, enfim, vocês são bilhões, me dêem uma chance!); não sou o Zorro; vou morrer; não sei assoviar alto; não sei dar nó em
gravata etc etc. A lista se estende e se entende.Mas se alguma coisa me frustra na vida é não saber jogar futebol. "Ai, queísso", diz a guriazinha das macegas me lendo e rindo. Guriazinha: tu não me viu jogar! Sabe o que
Hitler fez com os judeus na Segunda Guerra? É o que eu faço com a bola. Ainda assim, o destino me cercou de amigos tolerantes que jogam comigo. Bem, tolerantes uma pinóia: são sádicos (quando jogam contra mim) e masoquistas (quando são do meu time). Na real só entrei na história porque estou desempregado e solteiro, quase livre de compromissos. Sou presença confirmada para as partidas, artigo raro nos dias que correm.
Parece incrível, mas é sempre uma luta para conseguir entre 10 e 14 caras com duas pernas (duas mãos também se for para o gol), todos livres no mesmo dia da semana, dispostos a pagar para jogar em um campo de grama sintética adubada com borrachinhas potencialmente coçantes se entram na cueca ou na meia. Todo mundo tem sempre alguma coisa para fazer: crisma do afilhado, Titanic na TV a cabo, show do A-HA, cirurgia de apendicite, concurso de videokê, aulas de sapateado, é um mundo vasto e complexo lá fora. E se os organizadores ainda forem se dar ao luxo de só chamar quem jogue bem, aí, véio... E é por isso que eu jogo, Lei de Adam Smith e Zagallo: pouca oferta, muita demanda e vocês vão ter de me engolir.
Sendo assim, após semanas de negociação, conseguiu-se um horário que serve para todos, ou quase todos: terça de noite, 22h. (Jogamos juntos há três semanas - já é Boda de
Cuspe no meu almanaque. Se você ler esse texto depois da semana em entrou no ar, completamos um mês, Bodas de Orégano.) A merda é que sempre tem um jacu - a palavra da
moda, podem usar - que chega 10h10, 10h15, pensando só em si mesmo e prejudicando o grupo como um todo, pois chega o final do mês e é o nosso dinheiro que é desperdiçado.
Me impressiona que nenhum dos três principais candidatos à Presidência - quem for votar no Garotinho não precisa mais ler, valeu - tenha incluído em seu plano de governo a
taxação dos atrasos de jacus para jogos de futebol amadores. O dinheiro advindo iria para um fundo de amparo visando à compra de despertadores, à circulaçao de ônibus
especiais, ao fomento da pesquisa do teletransporte. Algo que dê um basta a esses atrasos.
Não bastando os minutos perdidos pelos quais se paga, não dá nem para encarar como exercício. "Ãi, é exercício sim", diz a guriazinha da tundra picando gelo. Guriazinha:
digamos, por requinte dialético, que esse jogo entre amigos seja encarado como um exercício. Você está lá correndo, pulando, fazendo aqueles arremedos de aquecimento só
por descargo de consciência, é um exercício. Suas aulas de Educação Física não eram muito diferentes. Acontece que tudo o que é suado é reposto com cerveja, muitas vezes no
mesmo recinto. Funciona para o Romário e só para ele.
"Ai, mas se tu é tão ruim e só reclama, porque tu joga?", diz a guriazinha das charnecas franzindo o cenho. Guriazinha, meus pais me passaram duas coisas: talco e a certeza de que a gente não tem de ter vergonha na hora de se divertir. Me divirto com os passes que acerto e erro, com os gols que faço e tomo, com os dribles que levo e - por acidente - dou. Me divirto horrores. E no fim do jogo é isso que importa.
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