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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Carmim (ou ainda: o fim da bela Carmela Serafim)

Sexta, 30 de agosto de 2002, 18h32



“Viver suja
suja a roupa suja
a louça suja boca
suja sobretudo
a maldita dita cuja
que não para de dizer
que só para pra dizer
viver é podre”
P.L.

Acelera. Carmela girou a chave na ignição do carro, o peito congestionado ardendo que não era tristeza e nem dor; mais parecia um verme roendo as entranhas, deixando um silêncio assustador e mais nada. Tudo havia mudado: a beleza que a fizera famosa nos idos de 57 se transmutou em algo de terrível, uma ausência completa de paixão. O tempo lhe esfriou o encanto, e ao longo dos anos se alimentou, babando e fossando como um porco em seus anseios. Estacionou em fila dupla em frente a um caixa eletrônico: meio dia e vinte. Encarando a porta espelhada, ela não se reconheceu.

Debaixo da fuligem, Preferia tornar-se invisível a todos os espelhos, mas para isso só a morte é eficaz. Espelhos podem estar onde menos se espera. E, sempre traiçoeiros, refletem monstros dos quais algum mecanismo secreto da mente faz o favor de nos poupar. Sempre em vão. Carmela ignorou a figura estranha no reflexo e correu de volta para o automóvel. Acelera.

Amarelo. Vermelho. olhou distraidamente no retrovisor e viu os olhos fundos, capas de gordura caindo sob as pálpebras. É assim: um dia todos os espelhos se partem em mil pedaços sob nosso desespero. Carmela, no entanto, sentia-se plenamente capaz. Só o reflexo a desmentia.

Os prédios brilhavam, amarelos de sol e fumaça, vomitando pessoas de suas bocas terríveis. Carmela quase esqueceu perdeu uma curva, mas o automóvel à direita deu-lhe passagem. E o motorista, um jovem ouvindo música alta, acenou com um risinho sardônico em sua direção. Risinho de rapazola. Carmela lembrou-se de seu tempo de moça, dos colegas, e dos apelidos que costumavam pôr nas criadas mais velhas. Pensou em Jonas, seu primeiro namorado sério, e na expressão de seus olhos quando, sozinhos pela primeira vez, ela tirou a blusa, descobrindo os seios pequenos. E pensou nos lábios de Luiz, nas mãos de Antônio, nos flancos de Roberto, e em todos os amantes dos anos passados, e em como eles a desejavam tão ardentemente, prostrados a seus encantos.

O barulho ensurdecedor dos motores ao redor, Carmela soube o que significava aquele riso: Velha, patética, risível. Era impossível aceitá-lo sem relutância. Nos lábios de um homem que atravessou a rua correndo, teve a clara impressão de ler ‘palhaço velho’. Verde. Amarelo. Vermelho. Carmela freou bruscamente. Aproveitou para alcançar no porta mala uma bolsinha de pano, e de lá tirou o batom: vinte e oito, rubro brilhante. Embora há muito intocado, parecia novo em folha. Com o dedo médio, ela aplicou uma leve camada nas maçãs do rosto, e sentiu-se mais corada. O reflexo imitava cada movimento, recortando o rosto enrugado no caixilho do retrovisor. Cuidadosamente, ela traçou o contorno da boca estreita e enrugada. Verde. Acelera.

Amarelo. Espelho. Buzina. Batom. Não pensou no riso do rapaz há pouco, e sim na boca encarnada que se abriu num sorriso, dentes amarelos. O silêncio carcomido em seu peito ruminava ainda, e Carmela sentiu, mais do que nunca, a sede insaciável de imagens e sentido. Fechou os olhos por um instante, e suspirou aliviada. Não percebeu o ônibus (lotado) descontrolado na contramão. Olhou no espelho, sem sobressalto, colisão frontal. O carmim no rosto relaxado se misturou ao sangue e ao olho aceso do eterno ciclope. Vermelho.

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