Podia aceitar que ela andasse com os olhos cheios de pintura, para disfarçar a vesguice gritante, ou que roncasse ou não soubesse cozinhar ou queimasse suas camisas quando tentava dar uma de dona-de-casa e as passava sem nem saber segurar o ferro. Mas não pôde acreditar quando Carmen entrou em casa com as compras e, na sua frente, começou a esvaziar uma sacola de supermercado cheia de cebolas. A vida toda sempre odiou cebolas. Na escola, aprendeu que trata-se de um vegetal com propriedades que ajudam a cicatrização. De sua parte, cebola era uma aparência repugnante, um gosto horrível e, além de tudo, um barulho irritante... crunch.... que fazia quando era mastigada, jogando suco ácido nas mucosas. Perdeu a conta das vezes em que ficou de castigo quando criança por terminar a comida e sem comer a pilha de pedaços de cebola no canto do prato.
Desistiu de tentar engoli-las sem mastigar depois que uma vez vomitou em cima da mesa. Mesmo depois de adulto, a aversão continuou grande. Virou motivo de piada nos almoços com os amigos do trabalho. Nos churrascos, sua função passou a ser sempre a mesma: preparar as cebolas no espeto.
Esparramadas sobre a mesa, eram um desafio à sua imaginação. Por que as cebolas estavam ali? Carmen não as recolhera, indo para a cozinha com o resto das compras, começando a mexer em pratos e panelas para fazer o jantar. Da porta da cozinha, ele encontrou a mulher de costas, mexendo no armário.
Você viu que vieram umas cebolas junto com as compras? Deve ter sido engano do supermercado.
Não – ela respondeu, ainda de costas – fui eu mesmo que comprei.
Comprou? Mas por quê?
De agora em diante, vamos ter cebola aqui em casa.
Você perdeu o juízo? Não sabe que eu não suporto cebola?
Sei. Mas é isso. Você odeia e eu adoro. Pronto, falei. Eu adoro cebola. Não consigo ficar sem cebola. Somos casados há seis anos e nesse tempo todo eu comi cebola escondido. Só de pensar numa a minha boca já está salivando.
Eu estou perplexo.
Pois fique. Nesse tempo todo tive que esconder as cebolas nesta casa. De dia, fazia pratos acebolados só para mim e ainda tinha que comer tudo antes de você chegar. Lembra quando eu engordei? Foi uma torta de cebola que levou dias para acabar. Foram seis anos nesse sofrimento. Seis anos! Pois se eu vivi sem comer cebola por sua causa, você pode passar os próximos seis anos comendo por minha causa.
Ficou maluca? Já sei. É uma brincadeira.
Não. Eu nunca falei tão sério.
Quer dizer que você é mesmo louca por cebola? Desde quando?
Desde sempre. O namoro, o noivado... A gente saía para jantar e eu sofrendo por dentro, porque em todo lugar tinha bife acebolado. Eu sempre quis pedir, mas aí tinha a sua... ahn... mania.
Ah, agora é uma mania.
E não é?
Claro que não. É diferente. Cebola me faz passar mal. Você viu da última vez em que comi, fui parar no hospital de tanto vomitar. E tem aquele barulhinho que me dá nervoso só de pensar.
Sabe o que eu acho? Que isso é frescura de filho único.
O que eu ser filho único tem a ver?
É cheio de manias. E tem uma coisa:
O quê?
Eu falei sério de que vai ter cebola nessa casa. Hoje tem bife acebolado no jantar.
Não quis mais conversa e foi para o bar. Ainda era cedo e começou a beber sozinho. Chegaram os amigos que ficam até tarde no trabalho, entre eles Nestor. Conhecia Nestor desde que os dois eram crianças. Uma vez namoraram duas irmãs gêmeas, mas isso é outra história.
Ela quer acabar comigo, Nestor – ele disse, já meio bêbado. Agora esse negócio de comer cebola... Como vou agüentar o hálito? Tô ferrado. Nunca mais vou beijar a minha mulher.
Vai se acostumar. Na vida, a gente se acostuma com tudo.
Quer saber? Vou pedir o divórcio.
Mas deixa de frescura, Luiz. É só uma cebolinha. Vai bem com tudo. Diz pra ela fazer picadinha que nem vai sentir.
Até tu? Porra, quantas vezes vou ter que dizer? Eu não como cebola e nunca vou comer.
Vai ter que comer. Ou tu não pensou por que ela está fazendo isso?
Não. Só que ela gosta de cebola.
Mas por que surgiu isso logo agora e não antes? Sabe o que eu acho? Tu devia abrir o olho. O amor dela está acabando. Já que o amor diminuiu, ela não quer mais fazer certos sacrifícios.
Lembrou de Carmen nos restaurantes mandando voltar pratos porque tinham vindo com cebola. Carmen, do corpo bem feito que os amigos olhavam gulosos nas festas. Carmen, que era a mulher mais bonita da festa de casamento. Os cabelos pretos e um rosto meio selvagem, feito Dolores Del Rio. "Sou um idiota", disse para Nestor, no carro, de carona para casa.
Da porta, ouviu a mulher roncando no quarto. Foi primeiro até a cozinha. Ao acender a luz, viu as cebolas ainda sobre a mesa da sala. O jantar ficou no fogão, coberto com um prato, grandes pedaços de cebola frita junto com o bife. Com um garfo, ele pescou um pedaço pingando de molho do bife. A cebola retorcida lhe lembrou uma minhoca. Respirou fundo e a pôs na boca. Mastigou depressa e engoliu. Depois, pegou outro pedaço e fez a mesma coisa. E mais uma vez e outra, até que acabaram os pedaços. Voltou à sala e pegou as cebolas cruas. Ali mesmo, começou a mordê-las, como se fossem maçãs. A boca aos poucos começou a ficar dormente. O gosto, pensou, nem está tão ruim, mas o estômago continuou revirando até que terminou de engolir tudo. No último pedaço, de joelhos, cercado por pedaços que caíram da bca, babava e chorava. Babava e chorava. Babava e chorava.
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