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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

O criminoso

Quarta, 09 de outubro de 2002, 19h03



O sujeito perde os dentes se não cuida, mas pode comprar tudo de volta um dia. Com dinheiro, recuperam-se os dentes e a juventude. Os dentes contam uma história. Se são podres é porque a boca é pobre e malcuidada. Mas os dentes dos moradores não eram podres ou de dentaduras e sim bem cuidados. Dentes que iam ao dentista e recebiam limpezas semestrais. Não precisavam ser substituídos. Sorrisos bonitos em rostos bonitos, feito na propaganda.

Prestava atenção nos dentes e nos rostos, e ainda nos carros e nas nuvens, para passar o tempo. O delegado deu ordem para ficarmos de campana em um condomínio da Bela Vista sem fazer nada, só vendo o movimento. Paramos o carro embaixo de uma árvore, perto da portaria, e esperamos quase três horas, até que o delegado apareceu suando e reclamando: Porra de calor. O carro também estava um forno. Fomos até a portaria e mostramos a identificação.

O guarda tinha um walkie talkie, chamou o supervisor, que nos mandou esperar e depois chegou de carro.

“Vou ter que avisar que vocês estão indo”, ele disse.

No terreno imenso, construíram cinco prédios tipo luxo, grandes varandas fechadas com vidro fumê se projetando de cada andar. O condomínio atraía os ricos que gostam de morar bem com uma oferta de mimos que iam de clubes e academias a um lago particular. Os ricos também gostam de segurança. Muros, guaritas e guardas tomavam conta deles. Ficava no alto de uma ladeira, embaixo se podia ver um bom pedaço de Porto Alegre, o Guaíba ao fundo. No último prédio, a avó, o avô e a mãe de um garoto nos esperavam no térreo. O avô tomou a frente. Tinha grandes bigodes que se mexiam de um jeito engraçado enquanto falava. Também lhe tapavam os dentes.

“Sou Alcântara, advogado. Fui eu que liguei”, ele disse.

“Será que nós podemos dar uma palavrinha com ele?”, o delegado perguntou. A mãe do garoto começou a chorar, mas fez que sim com a cabeça para o avô, que nos deixou passar.

No elevador, Alcântara disse que o neto passava o dia trancado no quarto. Ninguém sabia o que tinha lá dentro, nem a empregada podia entrar para limpar.

“Estamos preocupados”, ele acrescentou”, “ele não quer nada da vida. Terminou o segundo grau, mas não fez vestibular, dá pra acreditar? Diz que não quer saber de faculdade. Fala em ir para o Nepal. O Nepal? Faça-me o favor. Na idade dele eu já estava cursando Direito”

A porta do quarto fechada. Alcântara bateu.

“Não vai ao cinema, não sai à rua. Nem amigos aparecem aqui. Um menino cheio de saúde que não tem a porra de um amigo? Que fica com olheiras porque nunca dorme? Mas não foi por isso que eu chamei os senhores. Tem esse cheiro que sai aí de dentro o tempo todo, que ninguém sabe do que é. Tem horas que todo mundo fica intoxicado”.

“Maconha?”

“Não. Parece óleo, mas é mais forte. Sente só”.

Um aroma leve no ar, não identificado. Se fosse droga, ninguém conhecia. Na frente da porta do quarto, alguém, provavelmente o garoto, pôs um adesivo, provavelmente roubado de um trem, É proibido viajar com as portas abertas. O avô bateu de novo. O delegado pediu licença e também bateu.

“Somos da polícia. É melhor abrir”, disse.

A porta continuou trancada.

O delegado encostou na porta e tentou ouvir do outro lado. Fez um gesto negativo com a cabeça.

“Podemos arrombar?”, perguntou para o avô.

Alcântara pensou durante meio segundo e fez que sim.

O delegado bateu de novo. Qual o nome dele? Júlio, eu sou o delegado Gonzaga. Viemos a pedido do seu avô. É melhor abrir. Se não abrir, vamos botar a porta abaixo.

“Abre essa merda, Julinho”, Alcântara gritou. “Me dá uma marreta que vou eu mesmo botar abaixo”.

Nisso começou o zumbido vindo do outro lado da porta. O cheiro aumentou. O ar ficou irrespirável, feito óleo entrando pelas narinas e pulmões. Eu, o delegado, Jonas e Alcântara começamos a vomitar. De tão nauseados, não dominamos mais o estômago. O chão então começou a tremer e nos derrubou. Sei lá com que forças, puxei o revólver e atirei na fechadura da porta, pulando para dentro do quarto. Ainda deu tempo de ver um grande feixe de luz e, no meio, o rosto do garoto. Enquanto desaparecia, olhava para frente como se não tivesse nada para ver antes de ir embora.

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