Na frente do bar, tinha um sobrado antigo que um dia, depois da chuva, a prefeitura decidiu pôr abaixo. Veio um técnico, olhou as estruturas e decretou: Tem que demolir. Pode desabar a qualquer momento. Um grupo de moradores soube e protestou. Apareceu um funcionário do patrimônio histórico. Disse que o prédio era tombado, não podia ser demolido. Os moradores ficaram do lado do funcionário do patrimônio histórico. Não sabiam direito como salvar o prédio, mas começaram uma campanha contra a demolição. Chamaram a imprensa e, numa manhã de sábado, montaram uma vigília para salvar o edifício. Naquela mesma noite, vítima do tempo e da lei da gravidade, o sobrado desabou sozinho. Só um morador estava na vigília, disse que foi tudo rápido demais, nem deu para dar o alarme. Ficou um monte de escombros que, depois de retirado, deixou um grande buraco. Caberia fácil um carro e um caminhão ou uma casa inteira dentro. Eu estava do outro lado da rua, sentado no bar e olhando para a cratera. Fazia mais de quarenta graus. Passara quase uma hora na fila do banco e ainda precisava ir em outros três. Tomava uma coca para me refrescar quando o velho chegou e perguntou se podia se sentar comigo. O bar estava vazio, com muitas mesas vagas, mas a cara do velho era de quem precisava conversar. Não era jeito de bicha, nem nada. Eu tinha pena dos velhos. Ora, o que tem de mal?, pensei. Além do mais, tinha uma fita do Iron Maiden no walkman, qualquer incômodo era só apertar o play e pôs o volume no máximo. Fiz um sinal de positivo e ele se acomodou. Pensei que iria começar a falar, mas ficou um tempo sentado em silêncio. Como eu, olhava para o buraco.
"O senhor me perdoe, mas acho que sempre é melhor ir direto ao ponto quando o assunto é delicado", ele disse. Continuou: "Eu quero que o senhor coma as minhas filhas".
Tirou fotos da carteira.
"Olha aqui, essa é a Dalva. A mais nova. O senhor olhe pra mim, sou um caco velho e feio, mas Dalva puxou a mãe. Tem uma beleza tão suave. Minha mulher morreu nova, me deixou duas filhas pequenas para criar sozinho. Eu criei. Cresceram e ficaram bonitas. Me dá vontade de chorar quando penso nisso".
Falou em um tom triste. Deu pena do velho. O rosto dele era magro, fios de barba branca mal feita por todo o rosto.
"A outra é Jaqueline", ele continuou. "É essa aqui. Parece comigo".
Era verdade. Jaqueline tinha o rosto alongado e magro do pai. Parecia até demais com ele, era como um homem vestido de mulher. Ela e Dalva tinham a pele branca de quem não gosta de sol.
"E então?", o velho perguntou.
"Então o quê?"
"Vai aceitar?"
"Não sei. Essa história é estranha".
"Escuta, o senhor... você tem quantos anos?"
"Vinte e um".
"É casado, tem namorada?"
"Não".
"Pois, então, quer coisa melhor? Duas belezas dessas na cama. Tá pensando que sou cafetão?"
"E não é?"
"Não. Vem comigo que vai ver. Posso te fazer mais um favor. Te dou uma grana".
"Como é?"
"Eu pago pra você comer as minhas filhas. Você faz o que?"
Nem era preciso perguntar, só olhar a pasta embaixo do braço. Dentro, faturas, duplicatas e contas a pagar. Uma revista do Homem-Aranha para ler no ônibus e na fila do banco. Meu jeito de vestir: walkman, camisa do Kiss, jeans. Tava escrito na testa.
"Sou boy".
"Não deve ganhar muito bem, não é?"
"E algum boy ganha?"
"Pois, então. Vai ganhar mais um dinheirinho. Digamos que é um prêmio".
Fomos de táxi. O velho perguntou se eu podia pagar a viagem, que ele me pagava em casa. Disse que esqueceu a carteira. Quase desisti nessa hora, senti cheiro de picaretagem, mas já estava dentro do carro. Eu tinha o dinheiro da firma para pagar uma conta no banco. Pouca coisa, porque as contas geralmente tinham, preso por um clip, um cheque com o valor certo. Na viagem, o velho disse se chamar Maurício.
"Tem uma coisa", ele disse quando entramos no táxi. "Não quero explicar por que eu tô fazendo isso. É assunto de família. Se perguntar, não respondo".
Antigamente os pais ofereciam as filhas a quem pudesse pagar um dote ou dar uma vida melhor a elas. O amor não era levado em consideração. Maurício se importava com o amor? Não ia esclarecer, pois começou a falar sem parar sobre qualquer coisa. O tempo ("dizem que o calor já tá no fim. Logo, logo vai esfriar"), futebol ("falam muito de Garrinha, mas você já ouviu falar no Julinho Botelho?"). Blá, blá, blá, até que o táxi parou. O endereço era um prédio numa esquina de Copacabana. A corrida deu quase todo o dinheiro do envelope. Subimos pela escada, o apartamento era no primeiro andar.
Dalva abriu a porta. Mastigando chiclete, me deixou passar, sem dizer nada. A sala tinha quadros em todas as paredes, naturezas mortas ou paisagens com barcos e florestas. O velho entrou atrás, agitado. Perguntou com uma voz nervosa:
"Que tal ele?"
Dalva me olhou de cima a baixo.
"Mais ou menos".
Depois apareceu Jaqueline. Maurício me apresentou, mas ela também não falou comigo. Eram como nas fotos. As duas ficaram lado a lado e começaram a se despir. O corpo de Jaqueline era magro, mas não demais. Dalva era cheinha, o tipo que vive fazendo regimes. Nuas, elas foram até o sofá. Maurício, que estava no sofá, se levantou e mudou para uma cadeira em um canto. Eu ainda estava em pé, a pasta presa embaixo do braço. O celular da empresa, no bolso, não dava sinal de vida, ninguém me procurava enquanto eu arrancava as roupas e corria para o meio das duas. Na hora, não importou mais o quanto estranho era aquilo tudo. Jaqueline, para minha surpresa, era a mais macia. Sua pele se arrepiava quando a mordia e ao mesmo tempo apertava os seios de Dalva. As duas me agarraram e cada uma se posicionou numa parte do meu corpo. Verifiquei: Maurício ainda estava na sala, os olhos arregalados e fixos em mim, a boca aberta, arfando. Lembrei então do dinheiro do táxi. Um segundo depois, ele se levantou e voltou com umas notas e uma garrafa.
"Um vinhozinho tinto. É brasileiro, mas é bom. Para dar disposição", falou a última parte com uma voz sacana, enchendo um copo e me dando. Virei o primeiro copo e só deu pra sentir o gelado descendo pela garganta. Estava com sede. Pedi outro para poder sentir o sabor. Era meio amargo.
"Os italianos dizem que o vinho ajuda no sexo, mas isso nunca foi comprovado", disse Maurício. "Mas é certo que nos deixa mais relaxados".
Relaxado. Puxando Dalva para cima de mim, deitei ao lado de Jaqueline. Observei que as duas tinham os pêlos dos braços tingidos de louro. Das penugens, os olhos passaram a não ver mais nada. Relaxado. A visão se embaçou. Jaqueline e o pai, vistos sem os detalhes eram mesma pessoa. Relaxado. Maurício, arfando em algum lugar, não o via mais, assim como não via os quadros da parede e nem a janela para o mar. Relaxado, os olhos pesados, fechando. O arfar de Maurício, um som crescente. De repente, era um ruído contínuo e alto, não me deixando pensar. Relaxado. Dalva, um mar branco sobre mim. Nua.
Acordei com a boca seca. Um celular tocava distante. Uma dor de cabeça me acompanhou até o banheiro. Enchi as mãos na torneira e joguei água fria no rosto. Mais desperto, voltei à sala e não encontrei Maurício, Dalva ou Jaqueline. A pasta com as faturas e cheques tinha sumido. Também o dinheiro na carteira. Até o walkman. Na delegacia, o detetive de plantão deu uma risada me ouvindo.
"Sabe como chamam esse golpe? Boa noite, Cinderela. Chamam assim porque a vítima toma um sonífero e cai no sono. Nem um terremoto pode com alguns soníferos vendidos nas farmácias".
O filho da puta continuou rindo da minha cara. Contei o resto da história. Uma hora tocaram a campainha. Abri a porta e uma mulher entrou sem pedir licença. Você tem que ir embora agora, preciso do apartamento já, ela disse. Já deu a hora, acrescentou. Mas que hora? Cadê o Maurício?, eu perguntei. A hora do aluguel. Ela disse que alugava apartamentos por hora, quase sempre para programas de prostitutas. Maurício? Não sei quem é, não anoto nome de ninguém. O policial deu mais uma risada com esse detalhe ("Essa nós conhecemos, é a dona Lúcia, ex-cafetina. Vamos dar uma passada por lá") e depois que terminou o boletim, me deu para ler e assinar. Saí da delegacia, fui até um orelhão. O patrão ouviu a história, mas não me deixou terminar de contar, bateu o telefone na minha cara. Amanhã, disse, tu vai ver quando chegar.
Leia a crônica anterior
Veja as notícias »