Ou este homem está morto
ou meu relógio parou
Groucho MarxRita estava hospedada na casa de Paulo, que fez o contato usando um emissário, Renato. Foi ela a encarregada de me encontrar na rodoviária. Pela janela do ônibus, comecei a procurar entre as mulheres da plataforma aquela que mais se adaptava ao nome de Rita enquanto os outros passageiros se mexiam, inquietos, alguns já de pé apanhando bolsas e mochilas nos bagageiros. Pouco antes, na beira da estrada, passou uma grande placa: Bem-vindo à terra do campeão do mundo, um escudo do Grêmio. Eu não sabia como era Rita ou Paulo. Não tinha uma foto de nenhum dos dois. Renato eu conhecia, mas ficara no Rio e não podia ajudar. Quando o ônibus encostou numa baia e parou, soltando o silvo alto da pressão do ar expelida dos freios, estava nervoso e a ponto de desistir.
O motorista se virou e, como se ainda fosse preciso, disse bem alto:
Porto Alegre.
Na fila da passageiros para descer, eu e meu companheiro de viagem nos despedimos. Cansado depois de um dia inteiro dentro do ônibus, estava de mau humor, querendo um banho e cama. Ainda tentando identificar Rita, olhei de novo para cada mulher à vista, mas nenhuma se encaixava mesmo no nome. Ou era baixa ou alta ou gorda ou magra demais.
Renato também não sabia como ela era. Quando me levou até o ônibus, nos apertamos as mãos e ele me disse que Rita estaria à minha espera.
Mas como ela vai saber quem eu sou?
Ela tem uma descrição sua - ele respondeu. Quanto ao jeito dela, se tá nesse ramo, deve parecer uma machorra.
Meu companheiro de viagem também procurava na multidão. Durante a viagem, eu estava lendo o "Diário de um cucaracha", do Henfil, quando ele se sentou ao meu lado e começou a puxar assunto. Tentei não dar papo, mas insistiu com um comentário atrás do outro. Quando finalmente conseguiu me fazer pôr o livro de lado, contou: estava indo ao encontro da mãe, que deixou o Rio de Janeiro e abriu uma butique em Porto Alegre. Ele se mudava para ajudá-la na butique. A mãe trabalhava muito e mão pôde ir buscá-lo, pediu a uma funcionária para quebrar o galho. Mas ele não conhecia a funcionária. Examinava cada rosto na plataforma e depois dizia ser o dela.
Deve ser aquela, ele apontou uma jovem de cabelos compridos, toda vestida de preto, sentada num banco. Ela se levantou, olhando para dentro do ônibus. Aquela mesma, ele disse.
Desembarcou carregado de bolsas, indo sorrindo em direção à mulher, que, no entanto, o ignorou. Quando foi a minha vez, ela sorriu e veio falar comigo.
É você? Muito prazer, eu sou a Rita, disse.
Rita me levou a pé por uma avenida movimentada, com muitas lojas de animais, que disse se chamar Julio de Castilhos. Depois por outros lugares. Dizia esta é a Rua da Praia, este é o Mercado Público. Quando nos cansamos de andar, nos sentamos em um banco da Praça da Alfândega. Rita me apontou um grupo de ciganas na frente de um prédio antigo. Uma linha de seis ou sete delas, mais velhas e sentadas, estava encostada em um prédio enquanto as mais jovens circulavam entre as pessoas, tentando atrair os desavisados. Deixei Rita no banco e fui sozinho até elas. Uma das ciganas me parou e pediu um cigarro e depois disse: Como você foi educado, vou te ajudar sem pedir nada. Me levou ate uma das velhas sentadas no chão. As mãos da velha tremiam, grandes vincos na pele do rosto. Tinha uns oitenta anos. Precisei ficar de cócoras à sua frente.
Você - ela disse - ainda vai conseguir muito no trabalho e no amor, mas precisa tomar cuidado porque alguém está com olho gordo na sua vida.
Para acabar com o olho gordo, era preciso eu dar uma nota de dez ou de cinqüenta. Ela garantiu: Não iria ganhar nada, só pôr o dinheiro em um altar, para liberar meus caminhos.
Nota de um - acrescentou - não faz efeito.
Dei uma nota de cem porque fiquei com pena dela, mas não esperei o final da previsão. Deixei-a e voltei para Rita, ainda sentada no banco da praça. À distância, a cigana velha me apontou para as outras, mostrando o dinheiro. Rita me perguntou o que a cigana disse.
Nada - eu respondi.
Elas são nojentas. Ficam aí o dia todo, enganando qualquer um que pára para ouvir. Me dá revolta porque eu tenho sangue cigano - Rita disse. Meu pai se chamava Lazaros. É um nome de cigano europeu. Chegou ao Brasil há mais de cinqûenta anos e em vez de explorar os outros, começou a trabalhar. Ninguém diz, mas ciganos são bons em administrar negócios.
Você também lê a sorte, como elas?
Não. Meu pai não qusi me ensinar. Dizia que isso é besteira. Que só piora a imagem dos ciganos. Sabia que por causa da imagem de bruxos e ladrões os ciganos foram tão perseguidos quanto os judeus na Segunda Guerra? Milhares morreram nos campos de concentração.
Não. Você não sabe nada que elas fazem?
Só algumas danças, mas tenho vergonha.
E Paulo?
Quer saber se ele lê a sorte?
O que dá sorte para ele?
Bingos. Jogo legalizado. Esse país é engraçado, o jogo é proibido, mas se joga o tempo todo. Vivemos num grande cassino. Paulo administra uma grande rede no estado. Não é o dono, mas toma conta como se fosse. Os bingos dele dão prêmios como carros e apartamentos, mas no fundo, como sempre, quem ganha mesmo é a banca.
Ali mesmo ela me entregou um envelope. Conferi. Fotos, anotações e recortes de jornal.
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