A vingança
o assassino não redime
Shakespeare, em
Timão de Atenas Rita virou santa porque era caridosa e fazia milagres. Na verdade, era Margherita, nascida em Cassia, na Itália. Queria ser religiosa, mas foi obrigada a se casar. O marido bebia demais, brigava e acabou assassinado. Depois, uma epidemia matou seus dois filhos. Sozinha no mundo, Rita quis entrar para o Convento das Monjas Agostinianas, mas foi rejeitada. Um dia, por causa da fé, lhe apareceram num facho de luz três santos que a mandaram segui-los. Obedecendo, ela inexplicavelmente atravessou portas e trancas até acabar dentro do convento. Assustou as freiras, que rezavam perto. A madre superiora, então, a aceitou, mas ainda exigiu um teste: Rita devia regar um tronco de árvore seco e morto. Depois de um tempo, a vida renasceu no tronco e surgiu uma videira. Depois da morte, Rita foi canonizada.
Por causa da santa, Rita recebeu o de Cássia no nome, mas não a fé. Depois de me pegar no hotel, passamos por duas igrejas sem nenhum dos dois olhar para dentro. Deitado na escadaria de uma delas, um mendigo viu Rita. Os seios pequenos e duros, a cintura fina, a bunda ressaltada pela calça apertada eram um convite ao gracejo que Rita nem ouviu, já entrávamos no táxi que nos deixou na frente do prédio de Paulo. Toda cidade tem lugares pobres e ricos. O Moinhos de Vento é cheio de casas, bares, lojas e prédios luxuosos. O bairro mais caro de Porto Alegre, Rita disse. Na verdade, não tinha nada demais, é igual ao resto da cidade, mas dá prestígio a quem tem dinheiro morar perto dos outros ricos. Rita não podia morar perto deles antes de conhecer Paulo. Tinha a chave, entramos no apartamento.
Logo depois uma porta se abriu e entraram um homem baixo e outro gordo. Rita me apresentou Paulo, o homem baixo.
Este é o doutor Luiz - Paulo me apresentou o homem gordo. Nos apertamos as mãos.
Sentamos eu, Paulo e Luiz. Rita foi embora dizendo: vou à academia.
Tenho um compromisso daqui a pouco (olhou o relógio), então vamos ser diretos - disse Paulo. Leu o relatório?
Li.
O que achou?
Dá pra fazer.
Trabalho fácil. Só é preciso ser discreto. Por isso me indicaram você.
Para quando você precisa?
Para ontem - interveio Luiz. As mãos dele tremiam, os olhos faiscavam. Luiz tinha as mãos grossas (senti ao nos cumprimentarmos). Falava com um sotaque do interior: Quero que esse puto sofra. Que esse puto sofra muito. Nem toda dor do mundo é suficiente pra ele. Enfia uma estaca no cu dele se for preciso. Sabe o que ele fez? Esse puto matou meu filho.
O doutor Luiz tinha uma fazenda. Ficava aqui perto de Porto Alegre - era Paulo dizendo.
Mais do que uma fazenda, a minha vida. A minha, dos meus pais e dos meus avós. Estávamos há quase cem anos na terra - Luiz interrompeu de novo. Um dia chegaram uns homens e disseram: somos do movimento dos sem-terra, a sua fazenda está sendo invadida. Vamos ficar ali naquela área e se você quiser fica nessa. Onde já se viu alguém chegar e dizer isso na sua própria terra? Vieram jornalistas, então não pude mandar ninguém embora. Procurei a polícia, mas disseram que não podia fazer nada. Devia procurar a Justiça, pegar uma ordem de desocupação. Fui até um juiz que também disse: Não posso fazer nada, o país precisa de reforma agrária e, além do mais, toda terra foi roubada mesmo dos índios. Então saiu no jornal que o governo decidiu desapropriar a minha fazenda. Me deu revolta, mas a raiva maior foi do Celso, o meu filho. Antes que eu fizesse qualquer coisa, ele pegou uma espingarda e foi com uns empregados até o acampamento. De longe, ouvi os tiros. Depois trouxeram o corpo do Celso. Me disseram que eles já estavam esperando de emboscada. Só ele morreu. Os filhos da puta ainda botaram fogo no carro.
Alguma dúvida? - Paulo de novo.
Voltei sozinho ao hotel. Rita não retornara da academia. Apanhei os documentos no envelope. Um recorte de jornal: as invasões de terra cresceram mais de dois mil por cento nos últimos anos. O Rio Grande do Sul é um dos maiores focos de atuação dos invasores. Um fazendeiro diz que é a favor da reforma agrária, mas que deviam desapropriar as terras da igreja, um padre diz que as fazendas são grandes demais e improdutivas e que as terras da igreja são para obras sociais. O líder dos sem-terra, Julião (uma foto com uma espingarda na mão) afirma que deviam ser desapropriadas as terras dos fazendeiros e da igreja. A fazenda Nova Aurora, onde a foto de Julião foi feita, pertenceu a Luiz, porém foi desapropriada e transformada na colônia de agricultores Nova Esperança. Produzia o dobro de arroz e milho, pois não tinha mais pastos, só lavoura.
Rita telefonou mai tarde. Você quer jantar comigo? Ótimo, então passo aí de carro. Apareceu em um vestido preto elegante, com uma fenda do lado que mostrava a coxa inteira. Cheirava a sabonete e perfume finos. Fomos a um restaurante típico da cidade, segundo Rita. Nas paredes, fotos de políticos, músicos e jogadores de futebol com um homem sorridente e de cabelos brancos, o dono do restaurante.
Comemos vitela com massa rascatelli e batatas ao vapor, vinho tinto de Bento Gonçalves para acompanhar por indicação do homem das fotos na parede, que apareceu e perguntou se estávamos satisfeitos. Ele e Rita se cumprimentaram como conhecidos. Durante o café, Rita disse que Paulo, além de cuidar de bingos, fazia favores a empresários e fazendeiros. Em troca, recebia favores na hora de abrir novos bingos.
Por que eu?
Porque eles precisam de alguém de fora - ela respondeu.
E por que você está nessa?
Porque Paulo é ocupado e confia em mim.
Contou que os dois se conheceram em Manaus. Paulo ajudava a descarregar as caixas cheias de peixe dos barcos dos pescadores que voltavam do rio, ela trabalhava numa barraca de feira, vendendo ervas naturais ("Naquela época eu era tão sem graça que parecia um homem"). Um dia ele fez um serviço para um traficante da cidade e ganhou o dinheiro para ir embora.
Ele me chamou para vir junto. Eu vim - ela acrescentou.
E como o Luiz sabe quem atirou no filho?
Isso eu não sei, Rita respondeu. Alguém deve ter visto.
No carro, estava mais interessado no corpo de Rita do que na história de Luiz ou Julião ou Paulo. Aberta, com ela sentada ao volante, a fenda do vestido mostrava um grande pedaço dos músculos queimados de sol das coxas. Rita não se incomodava de estar exposta, dirigiu fazendo gracejos sobre a cidade. Quando parou na porta do hotel, pensei que iria querer entrar, mas só me esticou a mão para um cumprimento formal.
Por que você quis ficar aqui no centro? Podíamos arranjar coisa melhor. Esse é cheio de putas e vagabundos.
É perto da rodoviária.
Mais um recorte, outra foto de Julião. Atrás dele, homens segurando foices. Outra invasão. Julião, segundo o relatório, era uma espécie de general das invasões. Os invasores planejam as ações como os exércitos planejam os ataques. De madrugada, um grupo vai na frente e derruba as cercas e ocupa a terra. Chegam depois os outros para montar barracas e levar comida. Depois da invasão, eles chamam a imprensa para impedir que os fazendeiros os enxotem. As armas são espingardas, revólveres, foices, facões e pedaços de pau, para o caso de algum confronto. Mais tarde, começam a plantar. Julião não ficava nessa parte, partia para liderar a próxima invasão. Uma foto dele, dando uma entrevista em outra fazenda, em outra ocasião. Um rosto magro com tufos de barba espalhados.
Olhei no relógio. Meia-noite. Liguei para Rita. Um, dois, três, quatro, cinco toques. Alô.
O serviço é para amanhã - avisei.
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