» Página inicial

    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

O contrato – 3ª parte

Sábado, 09 de novembro de 2002, 15h02



Olha! Olha! – exclamou a roseira –
já está acabada a rosa.
Mas o rouxinol não respondeu.
Jazia morto na relva alta,
com o espinho cravado no coração

Oscar Wilde, em Novelas do Mundo


Dez minutos pra morrer. Uma voz monótona repetiu a última palavra, morrer, morrer, morrer... Julião me apontou a espingarda. Sorriu feito bandido de Sergio Leone, o rosto duro, sujo e perigoso. Estou sonhando ou é mesmo o fim? Como no cinema, a imagem a seguir, um close no dedo no gatilho, apertando. Acordei tremendo. Mal consegui acender um cigarro, dei uma tragada para me acalmar e apaguei no cinzeiro do carro. A brasa podia ser vista de longe. Duas da manhã no relógio digital.

Demorei menos de um minuto para abrir o carro, menos tempo para fazer a ligação direta e dar a partida. Parei perto de um terreno ao lado do acampamento. Os sem-terra montaram as barracas numa área do governo no centro. Na frente, colocaram faixas pedindo reforma agrária. O relatório dizia: dois sem-terra vigiavam trinta e duas barracas, trinta e seis homens e mais de cinqüenta mulheres. Muitas crianças. À noite, continuava, a segurança era fraca, só dois vigias e ainda assim separados um do outro.

Quem fez o relatório usou máquina de escrever, tinta vermelha para as informações mais importantes. Assim, escreveu: "Nenhuma arma observada. Eles confiam que não vão sofrer nada porque estão no meio da cidade. Muitos saem para se divertir e voltam de madrugada, bêbados. A polícia quase nunca aparece".

Levei comigo duas fotos de Julião. Bem ao lado do acampamento, separado por uma cerca de arame farpado, tinha um terreno baldio com o mato crescido que não foi invadido. Entrei a pé, andando abaixado para não ser visto. A barraca de Julião era difícil de alcançar, bem no meio das outras. É preciso proteger o general. Banhados pela luz da lua, os cães dormiam em frente a algumas barracas, junto a fogareiros e panelas. Segui as indicações do relatório até a barraca de Julião, feita de plástico preto, como as outras, mas com uma bandeira do MST presa no mastro. Só quando entrei, acendi a lanterna. Julião dormia ao lado de uma mulher. Em outro colchão, atravessado, duas crianças também dormiam. Os móveis eram só uma televisão em cima de um banco e um espelho. Roupas amassadas jogadas pelo chão.

Julião era magro, a pele firme sem nenhuma gordura por cima dos músculos. Abriu os olhos de repente e viu a luz da lanterna. Encostei o cano na sua cabeça e sussurrei: Quieto. Os olhos dele eram de pânico. Dizem que as pessoas sentem quando vão morrer. Puxei-lhe os cabelos, fazendo que se lavantasse. Saímos devagar, eu com a arma encostada na nuca de Julião.

Um barulho e te mato – avisei.

No meio do caminho, ele começou a chorar.

Por que?

Digam o que disserem, todo mundo deve saber porque vai morrer. Mandei Julião deitar no meio do terreno baldio e me sentei ao lado. A lua jogava luz sobre o matagal alto. Contei a história. Quando ouviu o nome de Luiz e da Nova Esperança, levantou a cabeça.

Foi um tiroteio – disse. Eles vieram armados e nós respondemos. Todo mundo atirou dos dois lados. Eu era o chefe da invasão, mas nem estava lá. Tinha ido a uma audiência com o juiz.

Apontei a lanterna para o rosto dele.

Ele veio pra cima de mim primeiro – ele murmurou.

Julião parou de falar e caiu. Mesmo com o silenciador, o tiro fez um barulho seco, que podia ser ouvido à distância por causa do silêncio em volta. Dei um segundo tiro, só por garantia. Quase engatinhando, corri para fora do terreno.

Entrei no carro e arranquei. Segui por uma estrada e de repente estava à beira do Guaíba. Parei em um trecho deserto. Logo que desci, vi um buraco. Joguei o relatório e as fotos de Julião dentro. Movi um pouco de terra com os pés para cobrir. Só então olhei para o relógio. Tinham passado quinze minutos.

Na frente do prédio de Paulo. Apertei o botão do interfone sem parar e ele atendeu com voz de sono. Me mandou subir. Rita não apareceu. Paulo estava de pijama. Deu um sorriso.

Boas novas, então? Deixa eu pegar o dinheiro.

Pegou um envelope numa gaveta e só então viu a arma.

Que porra...

Justiça social – respondi.

Amarrei Paulo na cadeira. Depois de apanhar pela primeira vez, me deu o endereço de Luiz. A cadeira com rodinhas girou e parou quando apertei o gatilho. Dei o tiro bem no coração. Getúlio também morreu de pijama e com um tiro no coração. Rita podia estar no apartamento, por isso apanhei um roupão jogado no chão, cobri a cabeça e saí pelo corredor, me escondendo das câmeras de segurança.

Em um bar, pedi um café com leite e bebi tão devagar que esfriou antes do fim. Do balcão, podia ver da rua as janelas escuras no apartamento de Luiz. O funcionário veio e perguntou se eu não queria trocar o café com leite por outro quente. Pedi para colocar em copo de plástico, para viagem. Na calçada, dois mendigos disseram Deus lhe pague quando lhes joguei umas notas ao mesmo tempo em que tocava o interfone.

Leia a crônica anterior

Veja as notícias »


outros canais
  • Exclusivo!
    Televisão, moda, astros e babados
  • Notícias
    Tudo o que acontece no Brasil e no mundo
  • Esportes
    Notícias, fotos e cobertura de jogos
  • Revistas
    Para todas as idades e gostos
  • Copyright© 1996 - 2000 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved.