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    EMILIANO URBIM
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Par de olhos

Quinta, 21 de novembro de 2002, 14h52



Deus escreve certo por linhas tortas.

Era 1986, eu estava em Garibaldi, e a eleição para governador havia acabado. Exagerando-se um pouco, poderia se dizer que a cidade inteira havia votado no candidato vencedor, Pedro Simon, do PMDB. Festa: champanhe, vinho, cerveja. "Uma sodoma", como dizia meu falecido pai, só que meu coração já tinha dona. Foi ali, no que hoje chamam de Parque da Fenbachamp, que eu a vi pela segunda vez no dia.

A primeira tinha sido na TV, na hora do almoço, no telejornal onde ela era âncora. Ali estava Maria do Carmo. Morena, de tailleur vermelho, sorridente e batendo palmas, em cima de um caminhão de som, recém chegada de Porto Alegre. Veio da capital junto com o deputado puxador de votos, Sérgio Zambiasi.

Eu, cercado de minha mãe e minhas quatro irmãs, só ouvia inveja: olha que pernas finas, claro que ela pinta o cabelo, quando alguém vai avisar essa mulher que ela é feia. Mas tudo o que eu pensava era: "aquele par de olhos...".

Moisés crê desperto que a viagem é curta. É o sétimo inverno desde que saímos do Egito e estou começando a achar que o velho despirocou das idéias. É um exagero: já marcarchamos mais que Abraão e ainda não atravessamos essa porra dessa península do Sinai! Cotidiano: caminhar, comer maná, dormir. "Não fosse o Faraó ter pego pra criar, tinha morrido: a mãe pôs fora", como dizia o falecido pai de um amigo meu de nome grego - mania de israelita pobre -, só que foi justamente por dizer coisas assim que o mar Vermelho fechou justo na vez de ele passar.

Naquele dia o Velho deu muito de pau-no-cu, que eu vi quem ele era. E nesse dia vi que o lance era ficar aonde eu sempre estive, na minha, na falsa esperança de que Canaã um dia chegue. E ali estava o tal "Profeta", como ele mesmo se chamava. Só, sério e cofiando a barba com a mão esquerda, no meio do deserto, pensando que é Deus. Veio das margens do Nilo e podia ter ficado lá.
Eu, para não ser pego, lembro em silêncio das piadas do pai do meu amigo: "os egípcios com sete pestes e nós com essa aqui", "Mosa, sai um dilúvio no feriadão?", " e aí, Deus tem pau grande ou vocês ainda não estão tão íntimos?". Mas o profeta não levou na brincadeira. Aquele pai do Hélios!

"Meu, deve ser perto, caminha, corta!". Era 1997, nós estávamos em Montevidéu e havíamos desativado o sistema de alarme do maior banco do Uruguai. Seria um extremo exagero afirmar que nós sabíamos o que estávamos fazendo. Penetração: portão, porta, cofre. "¡Tremendo!", como dizia meu falecido pai, só que para tirar sarro das minhas gírias. Foi ali, no que eu chamaria de broxada coletiva, que me vi pela última vez.

E nessa vez vi meu reflexo, no quepe do segurança, onde reconheci minha cara amedrontada. Ali estavam meus executores. Cinco, uniformizados e apontando armas para nossas cabeças, naquele cofre que seria o meu túmulo, rindo como hienas. Vieram da rua pelo barulho todo que estávamos fazendo! Eu, em algum documentário, ouvi uma vez: quem está morrendo lembra do que gosta, os peitos de Veronica, um churrasco com os amigos. Mas não morri pensando em carne: aqueles pães com alho...

Meus olhos abertos a fitar a horta. Era 1701, eu estava em Lilliput e havia desembarcado em nossa costa um náufrago. Não foi exagero o apelido que ele recebeu de nosso povo, Homem-Montanha. Estranhamento: pesos, medidas, distâncias. "Tudo que há existe", como dizia meu falecido pai, só que aquilo estava além da minha compreensão. Foi ali, na que ficou famosa como a Horta do Homem-Montanha, que o vi pela primeira vez.

E pela primeira vez vi sua mão enorme, em seu corpo enorme, levando entre o indicador e o polegar vários pés de alface. Lá no alto estava sua boca enorme. Enorme, aberta e engolindo minhas alfaces, bem na frente da minha casa, como se fosse natural. Veio de muito longe e ia nos ajudar na luta contra Blefescu. Eu, mesmo que abismado, percebi um mastigar insatisfeito: queria tempero, e foi ter com nosso rei, e ganhou uma caixa d'água de azeite. Mas a "colher" fui eu quem lhe deu. Aquela pá-de-óleo...

Zeus estava perto e abrindo portas. Era o décimo ano longe de Micenas, eu estava em Ílion e o exército grego finalmente entrava na fortaleza onde a bela Helena vivia cativa, graças a um cavalo de madeira de Odisseu. Não há exagero em dizer a vós que todos nós, mortais e semi-deuses, pensamos em desistir, dadas as muitas baixas naquele cerco infrutífero às margens do Egeu. Épico: sangue, suor e areia. "Deixa que os deuses te guiem", como dizia meu falecido pai, só que por muitas vezes seus desígnios me trouxeram desgraça. Nessas horas, em que questionava minha fé - vos confesso -, que ele me via e vinha.

E eu também o via o filho de Peleu e da ninfa Tétis, em sua armadura prateada, com sua invulnerabilidade sagrada. E ali todos o viam com a mesma admiração - e desejo. Lindo, matando e arrastando em sua carruagem o cadáver de Héctor, assassino de Patroclo, seu amante. Veio do lago Estige para ser o maior de todos os heróis. Eu, ainda que feliz pela vitória, choro ainda por sua morte: as bodas com Polixena, Páris com o arco, a flecha no calcanhar. Mas seu destino já estava traçado. Aquiles, pó de Ílion.

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