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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Sobre humanos e fenômenos

Sexta, 22 de novembro de 2002, 08h21



Passou na TV que foram dois milagres na mesma tarde. Uma garota ficou presa embaixo de um caminhão e o Silva, um nordestino vestido de porteiro, apareceu dizendo: Posso ajudar? Alguém perguntava Quem é esse maluco? ou coisa assim quando ele agarrou o pára-choque e o levantou com um braço só, deixando que os bombeiros retirassem a jovem antes de largá-lo com um estrondo. Depois de ir embora, continuando a caminhada vespertina, viu uma mulher gritando por socorro no apartamento durante um incêndio e, com a força do pensamento, flutuou mais de dez metros até pairar calmamente ao lado da janela. Retirou com alguma dificuldade a moradora, que, trêmula de medo e espanto, estava paralisada. Embaixo, uma multidão não conteve a perplexidade, dois motoristas bateram os carros tentando ver o fenômeno. Feito o salvamento, Silva pousou e recomeçou seu passo tranqüilo na direção de Ipanema. Ao atravessar a rua para tomar um sorvete, foi atingido por um caminhão de uma loja de eletrodomésticos que avançara o sinal.

No dia seguinte, lendo sobre a façanha nos jornais, Josué sentiu uma espécie de frenesi e um calor começou nas costas das mãos e passou para os braços e passou aos ombros e peito e pernas e pés e órgãos internos e de repente o jornal começou a queimar também. A cadeira estava em chamas, o plástico do assento derretera, o algodão do enchimento chamuscado. Gritou de medo, achando que morreria em instantes. Seu corpo seria só uma mancha de gordura e restos de ossos e cabelos e roupas no meio da cozinha. Mas então notou que não sentia dor. Mesmo o calor diminuíra, era pouco mais do que nada, apesar do fogo brotando em sua pele. Enquanto tentava entender o fenômeno, Marisa, sua mulher, entrou na cozinha atraída pelos gritos, viu o marido pegando fogo e não perdeu tempo ouvindo o que ele dizia. Encheu copos, panelas e garrafas de água e jogou sobre Josué. Como não deu certo, o abraçou com um cobertor tentando extinguir as chamas. No esforço, só conseguiu queimaduras graves nas mãos e pulsos.

Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, um grupo de encapuzados invadiu a casa de Lemuel, um ladrão de pouca importância que atacava casas e lojas da vizinhança, e o pegou desprevenido, dormindo o sono que é bom para os justos e injustos. Depois de alguns pescoções, Lemuel foi obrigado a se levantar e andar até o quintal só de cueca. Tremendo de frio, pediu para entrar e pôr um casaco, mas um dos homens deu uma risada e uma porrada na sua nuca, jogando-o no chão. "Agora se ajoelha", disse o mesmo homem, porém Lemuel não obedeceu, pois sempre ouviu dizer que as vítimas dos grupos de extermínio morrem ajoelhadas, então se fosse para morrer, iria ser na posição que quisesse. Comunicou isso aos homens esperando que a contrariedade lhe salvasse a vida, talvez eles desistissem por causa do contratempo. O mais malvado deles, contudo, só disse Como quiser, apontou a arma para o seu peito e atirou três vezes. Em todas Lemuel sentiu uma pancada que lhe o fez no chão e uma dor insuportável, mas depois a sensação passou e viu que não tinha nenhuma marca ou ferimento. Os dois homens continuaram atirando até que a munição acabou. Furiosos, pegaram uma faca cada um e atacaram Lemuel, que mais uma vez escapou ileso. Sem saberem o que fazer, o amarraram e enterraram até o pescoço no quintal até surgir uma idéia melhor.

Luiz Cláudio demorou dois anos para ceder aos argumentos da mãe, a favor do tratamento para crescer. A idéia, não sabia bem por que, o repugnava. Além do mais, que importância tinha se media menos de um metro e meio? Não se sentia mal. Entre os colegas, era conhecido como o Pequeno. Gostava do apelido. Disse isso à mãe ad infinitum, mas de tanto ouvir os pedidos, finalmente aceitou. Na sala de espera do consultório do doutor Jarbas L. Romão, folheando a Caras e ouvindo Djavan, não deveria esperar mais de 15 minutos, segundo avisou a recepcionista, mas se passaram duas horas e ainda não era a sua vez. O médico só atendeu duas mulheres nesse tempo todo. Luiz Cláudio pensou Deve ter uma orgia lá dentro. Se eu ficasse menor, iria saltar feito uma pulga e olhar pelo buraco da fechadura e depois começou a diminuir de tamanho. Primeiro um pouco menor, depois mais e mais e mais. A enfermeira não viu o acontecimento, entretida em digitar no computador. Finalmente, quando o médico abriu a porta e chamou o próximo, ela disse, olhando atentamente para a tela, Acho que cansou de esperar. Nenhum dos dois notou o pequeno ponto preto que se arrastava lentamente pela cadeira ao lado.

A onda atingiu Verônica na nuca e a arrastou com a força dos seus cincos ou seis metros. O salva-vidas contou à imprensa que viu os braços dela se agitando e mais nada. Uma tragédia, disse ao repórter, que anotou a frase no seu bloco de notas, porém a achou piegas demais para ser usada. O que não estava nem no jornal, que só saiu no dia seguinte gritando DONA DE CASA MORRE NA PRAIA, foi que Verônica não se afogou. A força da água a manteve no chão, lhe invadindo a boca e os pulmões, mas ela passou a respirar como um peixe. Por trás das suas orelhas, se abriram buracos que começaram a fazer o movimento de guelras. Os dedos das mãos instintivamente se afastaram e a membrana entre eles cresceu até ficar parecida com uma barbatana. Verônica nadou sem dificuldades até a tona. A cidade já estava longe, a maré a arrastava para mar adentro. Enquanto tomava coragem para nadar de volta, notou que seu corpo estava sujo. À sua volta, o mar também estava. Tentou se limpar, mas o maiô igualmente estava imundo e com um cheiro forte. Sem perceber, emergira no meio de uma mancha de óleo.

Nos últimos dias ele vem colecionando notícias sobre acontecimentos estranhos. Alguém já escreveu que não se pode confiar em tudo que diz a imprensa, por isso se recusa a acreditar em histórias como do homem forte ou do que pega fogo e não morre ou do outro que não pode ser ferido. Trancado em casa, não entende o mundo e tampouco vê a luz do dia desde os quinze anos por sofrer de fotofobia. Todas as noites, mal a luz do dia desaparece, corre para ver as pessoas e sentir os barulhos e sensações do mundo exterior que não pode conhecer em outra hora. É ótimo andar entre a multidão, que, apressada para chegar a algum lugar, pensa se tratar de mais um caminhante noturno. Neste passeio, aproveita cada segundo, lembrando que isso também vai acabar. Pela segunda vez, andando na sombra, seu corpo começou a brilhar.

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