Já dizia o Machado, eu admito que as pessoas tenham os hábitos mais estranhos. O de Pompeu era a mania de fazer discursos. Gostava da eloqüência, da palavra grandiosa, da frase rebuscada e bem colocada. Em batizados, enterros, casamentos, esperava a vez e então desencadeava uma profusão de elogios parnasianos mesmo que o homenageado não merecesse. Afinal, alguém já disse,a morte redime muita coisa. Quando entrou pelo meio do salão na própria festa de bodas de ouro, não foi surpresa para ninguém vê-lo subir numa cadeira e pedir a palavra. Os ouvidos se prepararam para a fala monótona de sempre, cheia de referências ao idílio familiar e à dona Marlene, ou Leninha, como chamava a mulher, que, sentada em um canto, descansava as pernas em cima de uma cadeira para aliviar as varizes.
No verão, chega a fazer mais de quarenta graus, mas a festa teve que ser à tarde, já que o salão fora reservado primeiro por outro para a noite. As pernas frágeis, músculos de mais de oitenta anos, e suadas demoraram para se equilibrar na cadeira. Vigiado pelos convidados, esqueceu o perigo de cair, arranhou um pigarro e começou o discurso. Primeiro falou da felicidade do lar e de quanto era gratificante a sagrada rotina diária.
"Rotina que me fez alçar nas águas da constância. Me fez ter todos os dias o mesmo pensamento. Um pensamento sobre como é viver contigo, Leninha".
Leninha, Marlene, ainda sentada, deu um aceno sem entusiasmo de agradecimento, mais preocupada em se abanar. Alguma coisa acontecera com o aparelho de ar condicionado. Não estava dando conta de vencer o calor. Pelo menos, notou, Pompeu não suava.
"Mas tem mais uma coisa, Leninha, isso nem tu sabes", ele continuou.
Uma pausa dramática.
"Em todos esses anos guardei o segredo de ti. Na verdade, mais de um segredo, pois se eu o tinha, tu também o tinhas, Leninha. Um segredo tão escabroso que escondi dentro de mim, envergonhado de sabê-lo".
Mais uma pausa.
"Leninha, eu sempre soube da tua infidelidade".
Equilibrado numa escada, o zelador do prédio, tentou verificar o que acontecia com o ar condicionado. Valdemar adquiriu o hábito de mascar chicletes por causa das mulheres chatas. Quando as ouvia, mastigava com raiva, mas também por precaução, evitando que respondesse o que lhe dava na telha. Na boca, duas massas verde e rosa, sabores hortelã e morango, se misturavam com saliva em mordidas furiosas enquanto Leonor, irmã de Marlene, reclamava do defeito. Suada, apertada no vestido de festa, descontava em Valdemar ter sido mandada para ver o conserto justo na hora do discurso. O aparelho estava colocado na parede, do lado de fora do salão de fetsas. Dali, não podia ouvir o cunhado, que, diante de rostos suados e curiosos, manejava uma taça de champanha, ameaçando beber, mas depois desistindo e olhando de volta para os convidados.
Dizem as artes da oratória que um bom orador deve saber dosar o que vai dizer, impondo a emoção que quase nos leva ao céu e ao inferno e também nos deixa descansar no limbo das partes menos grandiosas. Pompeu ficou em silêncio tempo suficiente para aguçar a curiosidade alheia, mantendo a tensão no ambiente. Deixou surgir um burburinho entre os mais próximos e que os convidados incautos, que estavam longe, chegassem mais perto.
"A tua infidelidade, Leninha. Eu sempre soube dela. És uma traidora", Pompeu finalmente continuou, dando um berro. Com a fúria de um discursador, emendou cada palavra elevando o tom.
"Infiel, pérfida, má, vaca. É o que és, Leninha. Você pensa que eu não sei, mas eu sei do Luís, da sapataria, em 1956. Do Adroaldo, aquele rapazinho que ia receber aulas de francês. Francês? E o Adroaldo nem tinha dentes. Me traíste com um banguela. E com um surdo também, o Almeidinha".
Se um homem com um anão nascido no lugar de cada braço irrompesse o salão e começasse a bater palmas, não causaria nenhuma sensação, tanto que os convidados foram hipnotizados pela revelação de Pompeu. Em silêncio, com uma expressão perplexa nos rostos, ouviram mais impropérios e revelações.
"Seu Rodrigues, o eletricista em 1972. Tínhamos pouco mais de quarenta na época e ele mais de sessenta, mas ainda assim passou pela tua cama. Guedes, do escritório. Esse ficou com remorso e me contou tudo. Pediu perdão chorando, disse que eu era como um irmão pra ele. Um irmão! Mas veja o que se faz com um homem que é como um irmão para o marido! Mas não acaba aí. O Nunes..."
Alguns amigos mais próximos tentaram segurar Pompeu e retirá-lo da cadeira, acabar com o escândalo, mas ele resistiu quando as mãos se aproximaram. Vociferou "eu vou gritar" e os mesmos braços se recolheram.
A peça saiu da engrenagem do ar condicionado e voou longe. Quando Valdemar, o zelador, mexeu no filtro de ar, levantou uma nuvem de poeira. Se virou para Dona Leonor:
"Não tem jeito. O cilindro furou. Só mandando consertar".
Mais palavrões. Pompeu xingou dez ou doze, todos endereçados a Leninha, que não podia ver sentada, mas sabia onde estava.
"Mas não é pior. Sabem o que é pior? O Pompeuzinho", prosseguiu. "Lembram que ele sempre foi diferente de mim e dela? É porque é filho do Vanilton ali".
Do lado de fora, Leonor deu um muxoxo. Respondeu para Valdemar: "O pessoal não vai agüentar o calor. Vai embora. Esse aparelho estragou a festa da minha irmã". Como Valdemar não respondeu, e ainda lhe deu as costas, entrou no salão para comunicar aos outros o contratempo. Pelo menos, se tranqüilizou, Pompeu continuava em cima da cadeira, sinal de que o discurso não acabara. Notou as manchas de suor nas roupas de alguns convidados. Não era justo que a festa da irmã acabasse assim. Também, quem mandou marcar festa no verão? Já estava quase ouvindo o discurso de Pompeu quando ele desceu da cadeira. Terminara.
Andou até a mulher. Dona Leninha olhou o marido em silêncio, sem desafio e nem vergonha. Limpando uma gota de suor da testa, Pompeu olhou depois para os convidados. Pompeuzinho, cunhados, primos, sobrinhos, netos o observaram de volta. Há quem diga que nessas horas aflora o perdão, que não há traição ou mal que dure a vida toda. Aguiar, amigo da juventude, falou baxinho "Pompeu, pensa bem, você já passou dos oitenta". Pompeu ouviu e deu um sorriso e todos sorriram de volta, mas depois emendou:
"Vão todos à merda. Eu quero o divórcio".
Virou as costas e foi embora da festa.
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