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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Urbanidade

Sexta, 20 de dezembro de 2002, 13h49



Na verdade, o homem não inventou os seres microscópicos e sim descobriu-lhes a função na natureza e o ciclo da vida. Já Giuseppe orgulha-se de nunca ter tentado inventar nada a não ser um cronômetro feito com um despertador velho para marcar o tempo das corridas que disputava com os amigos quando criança. O tempo que poderia dispender num laboratório prefere passar nos ônibus, olhando as pessoas e o mundo na rua, em um flanar preguiçoso que corrompe os princípios desta arte, mas é sem dúvida muito mais confortável.

Giusepe está olhando pela janela do ônibus e não vê quando a jovem se ajeita no banco à sua frente e, feito num anúncio de xampu, balança os cabelos antes de os encaixar por trás de si, entre o corpo e o banco. Outros homens no ônibus, porém, a percebem, inclusive um vendedor de 54 anos que é obrigado a colocar a valise diante do corpo para disfarçar o pau duro. No seu caso, a ereção vem acompanhada de uma surpresa agradável, já que broxou na cama com a mulher nas últimas duas semanas e a ouviu dizer duas vezes que quer o divórcio.

Quando sente o roçar dos fios do cabelo nas costas da sua mão, agarrada ao banco em frente, Giuseppe esquece a velhinha que acabou de levar um tombo na rua enquanto puxava o carrinho de compras sob o céu implacável de janeiro e olha para a jovem, Renatinha, que, por sua vez, está atenta à movimentação de um casal que luta para se desembaraçar dos outros passageiros a tempo de descer no ponto certo. Os olhos de Giuseppe vão para as pontas dos fios castanho-claros e depois toda a cabeleira e depois o que melhor pode ver de Renatinha, o pescoço. A pele à mostra, na sua opinião, implora para ser tocada. Úmida, macia e sensível. Mas ele já teve experiências desagradáveis com flertes e ousadias nos transportes coletivos, de modo que prefere esperar e ver o que acontece. De repente o homem que está do lado dela se levanta e eu sento no lugar, ele planeja. Esquece a janela, que no momento mostra o senhor Alberto D'Ávila caminhando na rua errada à procura do número 473.

Depois de mais ou menos meia hora de busca infrutífera, Albert, cansado e com calor, entra num boteco e pede uma água com gás e gelo e limão. O dono do boteco responde que não tem gelo e nem limão, mas pelo menos a água está bem gelada. Soltando um muxoxo, Alberto aceita e enche o copo de vidro que nas vinte e quatro horas anteriores recebeu doses de cerveja, caninha 51, conhaque Domecq e uma dose de cachaça de alambique com catuaba, que o cunhado do dono do boteco trouxe de Aparecida do Norte, além de uma cusparada de um bêbado sem educação. Mal a água gelada lhe invade o corpo, sente alívio e depois os primeiros efeitos de um choque térmico. A vista escurece, começa a ficar sem ar, até que os ruídos da rua e a voz do dono do botequim se tornam cada vez mais distantes.

Morreu, diz um passante, um aposentado que leva os dois cachorros para satisfazerem suas necessidades na porta alheia. Ele prefere os passeios no meio da tarde, apesar do sol, pois há menos pessoas nas calçadas e assim poucos ficam vulneráveis ao ataque de Sansão, seu cão rotweiller batizado sem muita originalidade. Apesar de ter apenas um ano e dois meses de vida, Sansão já mordeu:

a – 1 carteiro.
b – 1 pequinês.
c – 1 ovelha, que incrivelmente apareceu pastando na rua onde mora com o velho, embora não haja nem um tufo de mato sequer em toda a vizinhança. Para seu infortúnio, a ovelha levou uma dentada que lhe rasgou as artérias do pescoço.
d – 3 crianças.

Sansão, no momento, olha para as pernas do dono fora da bermuda, não entendendo bem o que são aquelas manchas na pele, pois na sua ignorância canina nunca vai saber o que são varizes. Não saberá também que o dono está pensando em mandá-lo para o sítio de um amigo, não por seu mau comportamento, mas porque dois dias atrás foi visitar o médico e ouviu o diagnóstico de que aquela dorzinha insistente do lado do peito é coisa séria. Foi para esquecer a visita que saiu com Sansão e Golias, seu poodle, também batizado com toda a falta de originalidade do mundo. O velho, no entanto, está cagando para a originalidade, até porque só comprou o poodle por causa de Renatinha, sua neta de quinze anos que está sentada à frente de Giuseppe.

Nenhuma tentativa atabalhoada é boa, Giuseppe sabe, o planejamento é tudo, etc, etc, mas ao mesmo tempo a nuca de Renatinha o atrai feito aquele flautista fez com os ratos. Os músculos são harmônicos e graciosos, recobertos com uma camada de penugem tão pequena que mal pode vê-la. Um pescoço digno de uma Cleópatra, como deve ser o pescoço da Nicole Kidman ou ter sido o da Grace Kelly. Ainda não conseguiu desvendar o rosto de Renatinha e nem o homem ao lado dela se levantou, pois ele, Antonio, está morto há exatos 43 minutos, desde pouco depois do início da viagem. A escrita oficial das delegacias batiza como mal súbito este tipo de morte. O sujeito anda na rua e... bum... cai morto do jeito que acontecia com as vítimas da peste. Antonio não contaminará ninguém, porém, pois deixou este mundo precocemente, aos trinta e sete anos, fulminado por um ataque cardíaco que pode ter sido causado pelos dois maços de cigarros ou as oito horas de trabalho diários nos últimos vinte anos. Embora os primeiros sinais do enrijecimento cadavérico já se manifestem em seu rosto, ninguém percebe por achar que só está dormindo e é muito feio. Por ter a mesma opinião, Giuseppe pragueja um palavrão e até levanta os joelhos e os apóia no banco, empurrando-o para a frente para incomodar Antonio. Durante esta retaliação inútil, o ponto chega e é a sua vez de ir embora. Justo quando começa a se mexer, um bando de gente idiota se levanta primeiro e entope o corredor do ônibus. Tendo de driblá-los, não consegue ver o rosto de Renatinha, apesar de se esticar na ponta dos pés em todo o trajeto até a porta da saída. Na calçada, decide que pelo menos saberá como ela é. Foda-se, pensa, não devo nada a ninguém, e começa a correr atrás do ônibus, que lentamente se afasta. Há um sinal vermelho uns duzentos metros à frente, Giuseppe nota, basta ter fôlego e dar tudo nas pernas. Os músculos, desacostumados a exercícios, gritam por socorro. Na sua passada de atleta, ele sente os pulmões queimando o ar, mas não se importa. Quase emparelha com o ônibus enquanto o motorista reduz a velocidade por causa do sinal. Mas justo nessa hora a luz passa a verde e o movimento do veículo não chega a ser uma parada, o motorista em seguida muda a marcha e acelera de novo, se distanciando de vez.

Com o coração partido, vê a traseira do ônibus se afastar até virar uma esquina e sumir. Ao se virar, em um ínfimo de segundo percebe que esteve e ainda está no meio da rua movimentada em hora de grande tráfego, com o sinal aberto, outros ônibus correndo na sua direção. Uma freada e o pára-choque o atinge na altura da bacia, causando um estalo que pode ter sido uma fratura ou uma luxação grave, o que não tem a menor importância, pois, jogado a doze metros, Giuseppe bate a cabeça no asfalto e sofre morte instantânea. Um envelope com cartas de baralho, um contrato de locação e um inusitado saco de bolas de gude ficam caídos a cinco ou seis metros e desaparecem nas mãos de um dos primeiros a chegar ao local.

Eu vi, mas não pude fazer nada, ele correu para o meio da rua, maluco, maluco, grita o motorista do ônibus, pai de Lucas, homem já feito, que não tem o menor pudor de comer garotinhas e nem duas horas atrás tirou a virgindade de Renatinha. De tão absorvida pela felicidade, ela não sabe da tragédia de Giuseppe, Antonio, do velho no bar e nem do próprio avô. E nem que existem homens morrendo e nascendo todos os dias. Só tem pensamentos para o amor e a intensidade da vida.

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