Prêmio Nobel para escritora sul-coreana joga luz sobre questão da igualdade de gênero na literatura
Dos 121 escritores vencedores do Nobel de Literatura até hoje, apenas 18 foram mulheres. A premiação, porém, tem apresentado mais equilíbrio entre os gêneros a partir do século XXI, o que não deixa de ser uma prova dos avanços das lutas feministas
"Acabei me casando porque ela não tinha nenhum charme especial, e também por não ter notado defeitos muito gritantes. Uma personalidade dessas, sem frescor, brilhantismo ou refinamento, me deixa confortável". Desta forma, o marido de Yeonghye define a esposa, a protagonista do romance A vegetariana, o mais aclamado da escritora sul-coreana Han Kang, vencedora do Nobel de Literatura 2024. Refletir sobre o romance é pensar também na importância de ter uma escritora como Han Kang laureada com a mais prestigiada premiação mundial.
A autora tem três livros traduzidos no Brasil: A vegetariana (2007), Atos humanos (2014) e O livro branco (2016). Nascida em 1970, na cidade de Gwangju, é filha do escritor Han Seung-won, começou escrevendo poemas, passou a publicar contos e se consagrou pelos romances.
Trajetória
A vegetariana foi publicado em 2007, traduzido para o inglês em 2015, ganhou o prêmio Internacional Man Booker no ano seguinte, o que alavancou as traduções e fez com que cruzasse fronteiras. No Brasil, por exemplo, ela participou em 2021 de uma edição da Festa Literária Internacional de Paraty (uma versão online, por conta da pandemia de Covid-19), em uma mesa intitulada "Vegetalize".
A cultura Oriental e aspectos históricos da sociedade sul-coreana aparecem retratados em sua obra. O livro Atos Humanos, por exemplo, fala de um massacre ocorrido em sua cidade natal, quando a atuação violenta do exército em um protesto estudantil ocasionou milhares de mortes.
Críticas à atual condição humana
Mas não foi pelo lado exótico ou informativo que seus textos chamaram atenção. A Vegetariana, por exemplo, também não causou rebuliço no meio literário nos últimos tempos apenas pela qualidade da escrita, mas também por revelar uma visão crítica sobre a sociedade contemporânea e a condição humana, que, apesar da origem da autora, parecem universais.
Discussões sobre o controle das mulheres, de seu comportamento e seus corpos, aparecem enfatizadas. Assim como reflexões sobre a relação dos indivíduos com o mundo animal e vegetal, em um período em que o planeta discute a necessidade de a humanidade repensar a sua relação com o meio ambiente, em que estudiosos vem destacando a presença de um pensamento vegetal em obras literárias.
Na publicação, a autora apresenta uma protagonista quase sem voz. É ela quem está no centro dos acontecimentos, sobre quem os outros falam. E são estes outros que narram, em três atos distintos, a desobediência imperdoável e incompreensível desta mulher, que decide, depois de um sonho impactante, deixar de comer e cozinhar carne. O marido cheira a carne e a repulsa que sente é vista como ofensa pela família. O ato silencioso faz pensar sobre a atuação da humanidade frente os animais. A personagem que não é apenas vegetariana, mas cada vez mais se aproxima à forma de vida das plantas, consumindo apenas água.
As relações afetivas acontecem em uma sociedade conservadora, mas mesmo em culturas mais liberais o exagero das situações parece ressaltar aspectos ainda presentes no mundo. A declaração que abre este texto é do marido de Yeonghye, que reforça em seu discurso que a escolha foi dele. Foi ele quem decidiu que uma mulher sem brilhantismo o deixava confortável, revertendo o amor romântico e a ideia de um casamento movido pelo afeto.
"Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano". Se em um relacionamento o outro é normalmente retratado como especial, por despertar sentimentos amorosos, no relato criado por Han Kang, especial é sinônimo de problema, desvio, e requer atitudes drásticas para que volte à "normalidade".
Momento de valorização da escrita feminina
O destaque de uma autora com uma obra crítica e original revela um período de mais valorização da escrita feminina. Historicamente, público e crítica sempre foram pouco receptivos aos textos de autoria feminina, que, em sua maioria, ficavam à margem, o que levou muitas mulheres a usarem pseudônimos. Esperava-se que falassem de temas domésticos e deixassem transparecer delicadeza.
A crítica em sua maioria passou a buscar características comuns nos textos de autoria feminina, diferenciando-os, assim, dos produzidos pelos escritores, vistos como textos universais. A expressão escrita feminina virou um rótulo associado a algo menor, de qualidade inferior. Termos como "poetisa" ou "literatura de mulher" acabaram pejorativos, utilizados em críticas para diferenciar a literatura exercida por homens, vista como de maior qualidade.
Tal crença acaba espelhada na seleção dos autores que viram referência, propagados em sala de aula, com trechos de seus textos reproduzidos em livros didáticos, estudados dentro das universidades. Um quadro que propiciou a composição de um cânone literário quase que exclusivamente masculino (com algumas exceções). O cenário foi mudando pouco a pouco a partir de meados do século XX, estimulado, por exemplo, pelo movimento feminista e as reivindicações por uma maior liberdade de comportamento a partir dos anos 1960. As premiações que destacam textos escritos por mulheres são um reflexo desse panorama e, ao mesmo tempo, contribuem para uma mudança mais acelerada de contexto.
Dos 121 escritores vencedores do Nobel de Literatura, desde o seu início, em 1901, 18 foram mulheres. A premiação, porém, tem apresentado mais equilíbrio entre os gêneros depois do século XXI, o que não deixa de ser uma prova dos avanços das lutas feministas. Mas, de forma geral, as mulheres costumam estar em minoria no histórico das premiações. Consequentemente, são minoria no cânone literário, o conjunto de livros que temos como referência, quando apontamos os autores mais importantes de cada país. Os aspectos, de certa maneira, se interligam.
As premiações funcionam como uma espécie de selo de qualidade, destacando determinados autores e chamando atenção dos leitores para as suas obras (a editora de Han Kang no Brasil, por exemplo, a Todavia, já anunciou a publicação de um novo livro da autora para o primeiro semestre de 2025. Nos demais países, provavelmente, o movimento será o mesmo). Estes passam a ser estudados, citados, viram referência.
Por conta deste panorama, o anúncio de uma vencedora como Han Kang tem tanta importância, pelas temáticas que aborda, pela liberdade de escrita, que reforça a falta de rótulos, pela afirmação da diversidade e por ajudar a firmar um cenário mais igualitário entre os gêneros. Vale ressaltar, também, que a vitória da autora coloca a Coreia do Sul no hall dos escritores vencedores do Nobel, reforçando a força que as produções artísticas coreanas, na música, no cinema, na literatura, vêm ganhando neste mundo hiper conectado.
Renata Magdaleno não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.