Project 2025: a América Latina na disputa de Trump contra a China
Para os conservadores, a entrada de países latino-americanos na Nova Rota da Seda é um risco à segurança nacional dos EUA, pois a China poderia extrair e comprar mais barato recursos naturais, conseguir apoio político e diplomático para isolar Taiwan e obter acesso a portos e bases para fins militares.
O The Conversation Brasil publica hoje, em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), mais um artigo exclusivo sobre o Project 2025, o manual de políticas criado por uma coalizão de mais de 100 organizações conservadoras americanas, que tem como principal signatário o 'think tank' Heritage Foundation. O documento é um dos principais indicadores das políticas e dos atores das administrações republicanas desde a era Reagan. E nesta sua mais nova versão, ele promete um 'movimento histórico' para derrubar o chamado Estado Profundo (Deep State) e 'devolver o governo ao povo'.
O primeiro governo de Donald Trump (2017-2021) mostrou que ele tinha dois importantes inimigos públicos: a China e as migrações irregulares de latino-americanos para os Estados Unidos. No Project 2025, documento com propostas de governo produzido pela Heritage Foundation, que tende a servir de base do segundo mandato do republicano, esses dois inimigos são reforçados. Porém, dessa vez, a América Latina figura como um espaço de disputa por influência entre os Estados Unidos e a China.
O Project 2025 alega que a China está conquistando a América Latina por meio de empréstimos e investimentos que, desde 2005, já teriam ultrapassado US$ 240 bilhões, seja via entidades estatais ou não. Para os conservadores, a entrada de países latino-americanos na Nova Rota da Seda é um risco à segurança nacional estadunidense, pois a China poderia extrair e comprar mais barato recursos naturais, conseguir apoio político e diplomático para isolar Taiwan e obter acesso a portos e bases para fins militares. Em novembro de 2024, o presidente chinês, Xi Jinping, esteve no Peru para inaugurar o Porto de Chancay, construído com financiamento da estatal chinesa Cosco Shipping Company, totalizando US$3,4 bilhões. O objetivo: reduzir de 40 para 28 dias o transporte de mercadorias entre o Peru e a Ásia.
O Project 2025 faz críticas ao governo democrata de Joe Biden (2021-2025), afirmando que suas "políticas climáticas progressistas" destruíram a rentável indústria petrolífera da América Latina, reduzindo as receitas de exportação e promovendo instabilidade econômica e política. Segundo eles, com a região em crise, a China se aproveitaria para expandir seus negócios e afastar as nações latino-americanas dos Estados Unidos. Além do negacionismo climático, esse argumento conservador é falso.
Conforme relatório de 2023 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a queda na produção de petróleo se deu por lacunas de investimento; aumento na competição internacional; variação da demanda internacional; e queda do superávit do setor na região.
Ademais, a queda do preço do petróleo globalmente fez a região investir mais em energia renovável para reduzir sua dependência dos combustíveis fósseis, como mostra o gráfico abaixo.
Tentando reverter a perda de influência estadunidense na América Latina, a iniciativa conservadora defende que o segundo governo de Trump utilize a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). A USAID deve priorizar investimentos em projetos pró-democracia e livre-mercado; tecnologia 5G; desenvolvimento tecnológico; e prevenção da pesca ilegal chinesa.
Ademais, argumenta-se pelo aumento do financiamento a atores locais, especialmente entidades religiosas, voltadas para funcionarem como uma barreira à "promoção do aborto, radicalismo de gênero, extremismo climático e outras ideias woke". A pauta reprodutiva, conforme o Project 2025, é fundamental para a região, pois as ONGs que receberem ajuda financeira da USAID devem priorizar as agendas antiaborto, anti-LGBT e econômicas pró-EUA.
Por considerar a América Latina uma região crucial para a segurança dos EUA, por sua proximidade geográfica e riquezas naturais, o Project 2025 sugere que Trump, via USAID, também invista em projetos de reformas do Judiciário para ser mais "funcional" (não há especificação do que isso significa); promoção de reformas trabalhistas e previdenciárias; e redução de impostos e de regulamentação do comércio para ampliar trocas com os EUA, pois, assim, a região poderia encontrar "estabilidade econômica e política". Adicionalmente, o projeto indica que "ideias socialistas" devem ser desafiadas por capturarem governos e juventudes.
Um dos caminhos para isso está no financiamento de universidades e think tanks pró-livre mercado e que "defendem ideias democráticas" e transferência de seu portfólio financeiro e tecnológico para organizações latino-americanas até 2030. Sim, o documento afirma categoricamente que os EUA devem investir em atores locais para desestabilizar governos de esquerda. Não, não estamos na Guerra Fria e no período de financiamento de ditaduras militares, mas sim, em 2025, com as mesmas ideias de intervenção em busca do fantasma do comunismo —e isso é dito abertamente.
A falácia migratória
Quanto às migrações, o Project 2025 enfatiza que as fronteiras devem ser "seguras", e os fluxos, "controlados", pois a entrada "ilimitada de mão de obra barata" reduziria os salários dos trabalhadores estadunidenses. Segundo dados do Banco Mundial, durante a gestão Trump (2017-2021), o PIB per capita dos Estados Unidos teve média de US$ 63.384, enquanto no governo Biden (com dados até 2023), o valor foi de US$ 77.374.
Dados de desemprego da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também desmentem os conservadores, pois Biden assumiu em janeiro de 2021 com o desemprego em queda, em 6,1%. Seu mandato conseguiu permanecer abaixo de 4% em boa parte do quadriênio e obteve 3,4% em abril de 2023, o menor valor da série histórica da OCDE desde janeiro de 2005. Ou seja, migração não promove perda de renda e desemprego nos EUA.
Ainda assim, o Project 2025 insiste na teoria conspiratória com base no supremacismo branco de que as migrações destroem a economia e a sociedade estadunidenses. Eles acusam Wall Street, empresários de tecnologia do Vale do Silício e grandes varejistas de serem pró-migração para reduzir salários e lucrarem mais com "trabalhadores baratos latino-americanos".
Outrossim, defendem que os EUA transfiram suas cadeias globais de produção da Ásia para a América Latina e para o país em si, recorrendo a um novo ciclo de industrialização para garantir empregos e renda, além de infringir perdas econômicas à Ásia. Os negócios ampliados na América Latina reduziriam a pobreza, o que, segundo eles, tornaria a migração para os EUA menos atrativa.
A China não é a única inimiga na América Latina, pois países da região são citados como ameaça à segurança regional, devido ao narcotráfico, e vulneráveis a potências hostis, como a China, Irã e Rússia, sendo eles: Colômbia, Equador, Guiana e Venezuela. O México surge como um país que perdeu sua soberania para o narcotráfico e que precisa ser protegido. Segundo o Project 2025, Trump deve retomar a implementação do programa "Remain in Mexico" ("Permaneça no México"), que determina que o país será responsável por acolher migrantes para os EUA; lutar contra narcotraficantes de fentanil que seriam aliados da China (que forneceria matéria-prima e equipamentos), influenciando na letal epidemia de drogas contra americanos.
Ademais, a defesa da construção do muro na fronteira EUA-México é renovada, mas com a inserção de militares da ativa e guardas nacionais (convocadas por governadores republicanos) para prender migrantes na fronteira, supostamente contrabandistas de fentanil. Nesse contexto, o Departamento de Segurança Interna tem seu papel reforçado.
O Project 2025 não aborda a luta contra a demanda por drogas, mas menciona a intervenção no México e no suposto financiamento chinês ao fentanil como maneira de suprimir a oferta. Em diversas passagens, a China aparece como a inimiga desestabilizadora da América Latina, seja com dinheiro, seja com homens armados na fronteira. O que vemos como discurso norteador para o mandato Trump 2.0 é, portanto, a utilização de um rival geopolítico como argumento para intervenções ilegais na região.
Os autores não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que se beneficiaria deste artigo e não revelaram qualquer vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.