Project 2025: protecionismo comercial e ultraliberalismo no Tesouro e no Fed
Planos para o futuro governo Trump incluem a promoção do descrédito das organizações multilaterais, oposição às agendas climáticas e de equidade, e uma postura explícita de enfrentamento à China no âmbito do comércio
O The Conversation Brasil publica hoje, em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), mais um artigo exclusivo sobre o Project 2025, o manual de políticas criado por uma coalizão de mais de 100 organizações conservadoras americanas, que tem como principal signatário o 'think tank' Heritage Foundation. O documento é um dos principais indicadores das políticas e dos atores das administrações republicanas desde a era Reagan. E nesta sua mais nova versão, ele promete um 'movimento histórico' para derrubar o chamado Estado Profundo (Deep State) e 'devolver o governo ao povo'.
Em linhas gerais, os artigos sobre economia contidos no Project 2025 reforçam características marcantes do trumpismo, ao mesmo tempo que delineiam estratégias para seu aprofundamento. Apresentam uma perspectiva ultraliberal, excetuando-se o protecionismo comercial, e destacam os supostos benefícios da desregulação econômica e financeira como motores do crescimento.
No âmbito das negociações internacionais, promovem o descrédito das organizações multilaterais, privilegiando o unilateralismo. Além disso, as propostas refletem oposição às agendas climáticas e de equidade, bem como uma postura de enfrentamento à China - considerada a principal ameaça. Por fim, destaca-se a intenção de ampliar o poder presidencial sobre a administração pública, por meio do aumento das indicações políticas.
No comércio internacional, a égide do protecionismo
A seção sobre comércio internacional do documento revela a falta de consenso na elite conservadora, com a apresentação de dois artigos concorrentes: "The Case for Fair Trade" ("A defesa do comércio justo"), de Peter Navarro, defensor do protecionismo contra a "agressão comercial" chinesa, e "The Case for Free Trade" ("A defesa do livre-comércio"), de Kent Lassman, presidente do Competitive Enterprise Institute, think tank que promove a liberalização comercial. Pelos passos anunciados por Trump até o momento, focamos nossa análise no texto de Navarro, diretor do Escritório de Política Comercial e Industrial na gestão 1.0 do republicano.
Navarro, que foi preso por se negar a fornecer ao Congresso evidências relacionadas ao atentado contra o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, identifica dois problemas principais na política comercial atual do país.
Em primeiro lugar, critica a exigência da Organização Mundial do Comércio (OMC) de tratamento de Nação Mais Favorecida aos membros da organização. Isto é: se um país concede um benefício comercial a outro (como uma redução de tarifa), ele deve estender esse mesmo benefício a todos os outros membros da OMC. O autor afirma que, nesse esquema, países com altas tarifas não têm qualquer incentivo para baixá-las, enquanto aproveitam termos comerciais favoráveis que são impostos aos outros parceiros comerciais.
A solução para esse problema seria uma lei denominada United States Reciprocal Trade Act (Lei do Comércio Recíproco), que permitiria ao presidente "negociar" com países mediante a ameaça de imposição de tarifas equivalentes àquelas praticadas por eles. Isso indicaria um retorno à postura adotada no primeiro governo Trump, rumo a uma tentativa de liberalização unilateral e agressiva, à margem de instituições multilaterais como a OMC.
Navarro afirma que o presidente deveria priorizar países com os quais os EUA têm déficits comerciais maiores e que aplicam um nível mais alto de tarifas aos produtos americanos. Essa abordagem colocaria países como Índia, China, Taiwan, Tailândia e Vietnã, além do bloco da União Europeia, em rota de colisão com um eventual segundo governo Trump.
China: parceiro "desleal" e "ameaçador"
A China, mais do que qualquer outro país, é enxergada não só como um parceiro comercial desleal, mas também como uma ameaça existencial à hegemonia norte-americana.
Navarro afirma que negociar com a China, ainda que sob a ameaça de imposição de tarifas e outras sanções comerciais, é um exercício inútil, tendo em vista o histórico de tentativas de acordos no primeiro governo Trump. O país asiático teria se aproveitado das condições comerciais favoráveis encontradas após a entrada na OMC (à época estimulada pelo então presidente dos EUA, Bill Clinton, convém lembrar) e por meio de atuação desleal, incluindo roubo de propriedade intelectual, aquisição em massa de ativos americanos, manipulação cambial e transferências de tecnologia forçadas, colocado em prática um "plano de dominação mundial".
Sua proposta, portanto, seria se dissociar da China, cortando laços comerciais e financeiros com o rival asiático, uma vez que qualquer tentativa de acordo seria infrutífera ou até perigosa. A retórica pesada ignora, porém, a realidade de que a China é titular de mais de US$ 770 bilhões em títulos da dívida pública estadunidense e que uma guerra comercial entre os dois países, somada aos efeitos do "tarifaço" generalizado proposto pelo republicano (de até 100%), teria efeitos deletérios para a economia dos EUA, incluindo forte pressão inflacionária.
Mas tudo isso indica que o governo Trump 2.0 deve mesmo implementar uma política econômica ainda mais diligentemente protecionista. O impasse na principal instância multilateral de comércio - a OMC - deve ser mantido e acordos como o USMCA podem ser atropelados. Nem aliados históricos de Washington devem ser poupados da sanha tarifária de Trump.
A Europa, já vulnerabilizada pelas ameaças contra a aliança militar transatlântica (OTAN), deve ser vítima de negociações agressivas, que podem implicar concessões unilaterais aos americanos. O Brasil também deve se preparar para a atuação do republicano, que já ameaçou impor tarifas retaliatórias contra o país. Caso as ameaças se concretizem, a parcela pró-livre comércio da elite conservadora do país sai derrotada do embate.
Para além da agenda comercial, entre as inflexões mais notáveis contidas nos textos do Project 2025 está a proposta de eliminar o duplo mandato do Federal Reserve, o Banco Central americano, restringindo sua atuação na estabilidade de preços, e limitar os resgates de instituições financeiras consideradas Too Big to Fail ("grandes demais para quebrar") pelo próprio Fed e pelo Tesouro americano. Esses temas são abordados a seguir.
Departamento do Tesouro: reversão das políticas de Biden e desregulação financeira
O texto de William Walton, Stephen Moore e David Burton propõe um conjunto de medidas ultraliberais e reacionárias concentradas na reversão do que chamam de "agenda racista da equidade" e "agenda de risco financeiro relacionada ao clima". Para eles, a regulação econômica e seus custos são entraves ao crescimento, e responsáveis pelo aumento dos preços.
A "agenda woke" é vilanizada como causa das mazelas econômicas e da expansão da dívida pública sob Joe Biden, com a recomendação de que o país retome suas atribuições fundamentais: política tributária, responsabilidade fiscal, regulação financeira e enfrentamento das ameaças geopolíticas, especialmente as representadas pela China.
Os autores consideram ainda que o governo Biden introduziu distorções na economia, com "impostos, créditos fiscais, deduções e exclusões de interesse especial". A prosperidade viria com uma reforma tributária que reduzisse as alíquotas marginais de imposto e o custo de capital, ampliasse a base tributária - com "baixas alíquotas sobre uma base tributária ampla e neutra" - e simplificasse o sistema, reduzindo os custos de conformidade. É uma perspectiva que ataca também, implicitamente, os elementos de política industrial do governo atual.
O manual propõe uma reforma tributária intermediária, considerada regressiva por seus críticos, e que inclui a revogação dos tributos aprovados na Inflation Reduction Act (IRA, Lei de Redução da Inflação), de Biden, como os estímulos às empresas de energia verde e as medidas que obrigam os produtores de medicamentos a cumprirem os preços estabelecidos pelo Medicare.
Há também uma proposta de reforma tributária fundamental, que visa a substituir o atual sistema de imposto de renda federal, que "tributa pesadamente o capital e a renda corporativa, desencorajando o trabalho, a poupança e o investimento", por um imposto sobre consumo que "minimizaria a distorção das decisões econômicas privadas pelo governo".
No que diz respeito à administração tributária, o foco recai sobre o Serviço de Receita Interna (IRS, a Receita Federal dos EUA), descrito como mal administrado, politizado e ineficiente. Para implementar as mudanças necessárias e romper a "inércia burocrática", seria essencial aumentar o número de cargos preenchidos por nomeações presidenciais na agência.
Desafios ao multilateralismo e riscos financeiros
No âmbito internacional, o texto adota a perspectiva trumpista contra acordos e organizações multilaterais, defendendo que os EUA abandonem OCDE, Banco Mundial e FMI, interrompendo financiamentos, sob alegações de "viés de esquerda" e conflito com princípios de livre-mercado. Propõe uma política de "cenoura e porrete", com maior presença americana na governança dessas entidades, ou se retirando delas e de acordos internacionais. Quanto ao desafio chinês, sugere que o Comitê de Investimentos Estrangeiros (CFIUS) priorize o monitoramento de investimentos "greenfield" chineses, que poderiam expor os EUA a estratégias econômicas como desvio de ativos e inovações. Recomenda-se ainda incluir o Departamento de Defesa como copresidente do Comitê.
A proposta de regulação financeira sugere a remoção das barreiras entre as instituições financeiras, exigindo "padrões mais altos de patrimônio ou retenção de risco", substituindo a regulação governamental pela "concorrência e disciplina de mercado", o que reduziria o risco de crises financeiras futuras. Propõem ainda a revogação dos Títulos I, II e VIII da Lei Dodd-Frank, criados para supervisionar empresas financeiras consideradas Too Big to Fail após a crise global de 2008. No geral, as propostas buscam reverter as regulações pós-crise de 2008, o que abre espaço para futuras crises sistêmicas.
Federal Reserve: crítica ao duplo mandato e conservadorismo na política monetária
A seção sobre o Fed foi escrita por Paul Winfree, um economista e conselheiro de políticas públicas com carreira significativa em instituições governamentais e think tanks nos Estados Unidos. No governo, ele atuou como diretor de Política Orçamentária e vice-diretor do Conselho de Política Doméstica durante a administração Trump.
O autor destaca o papel do dinheiro como unidade essencial de medida na economia de mercado e a importância de sua estabilidade para o crescimento econômico. Lança duras críticas à incapacidade de alcançar esses objetivos, devido a decisões que teriam prolongado crises, como a Grande Depressão, e pela persistência de recessões frequentes desde sua fundação. Isso ocorreria pela dificuldade de ajustar rapidamente a oferta monetária e pelos problemas de "risco moral" gerados pelos resgates financeiros a instituições privadas que realizaram especulação excessiva.
O autor destaca que, entre as responsabilidades do Fed, estão a gestão da oferta de dinheiro, das taxas de juros e sua atuação como emprestador em crises financeiras, fornecendo liquidez para evitar colapsos. Na crise de 2008, o Fed implementou um programa de compra de ativos para estabilizar os mercados. Além disso, o Federal Reserve supervisiona o setor financeiro, monitorando a saúde das instituições e garantindo conformidade com as regulamentações federais, o que inclui avaliações de capital e auditorias para prevenir práticas arriscadas.
O autor critica a falta de independência política do Fed, frequentemente questionada em recessões ou eleições, quando pressões políticas podem comprometer decisões técnicas em favor de objetivos de curto prazo. Sobre esse ponto, cabe ressaltar que declarações recentes de Trump sugerem seu interesse em interferir na política do Fed.
Winfree critica o duplo mandato do Banco Central dos EUA, que busca equilibrar estabilidade de preços e pleno emprego, por considerar esses objetivos conflitantes. Ele propõe reformar o Fed para focar exclusivamente na estabilidade de preços e no controle da inflação. Outra proposta é limitar a função de emprestador de última instância, incentivando os bancos a adotarem práticas mais prudentes e robustas. Essa abordagem reduziria a necessidade de intervenções frequentes por parte do Federal Reserve e poderia ser implementada por meio de requisitos de capital mais rigorosos.
A expansão do balanço do Fed em crises financeiras, por meio de compras maciças de ativos, como títulos hipotecários e do Tesouro, é criticada por gerar riscos fiscais e distorções. Propõe-se limitar suas aquisições a títulos do Tesouro, eliminando conflitos de interesse, distorções e aumentando a transparência das políticas monetárias.
Em síntese, as propostas dos autores para o Tesouro e o Fed resultariam em maior concentração de renda, ampliação da desregulação financeira e redução da capacidade do Estado de responder a crises e promover o pleno emprego. Partem da premissa de que as crises decorrem ou se prolongam, devido a intervenções equivocadas do Estado, ignorando sua natureza intrínseca à dinâmica capitalista
Os autores não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que se beneficiaria deste artigo e não revelaram qualquer vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.