Rota Brasileira do Fogo: como estradas e ferrovias em áreas florestais podem agravar a crise climática
Mudanças climáticas, secas prolongadas e atividades humanas como a construção de estradas e ferrovias criam condições para incêndios florestais de grande escala que se espalham rapidamente pela paisagem
A atividade humana tem sido um fator chave no aumento dos incêndios florestais, especialmente na Amazônia, que contém as maiores áreas protegidas do mundo. A expansão da agricultura e da infraestrutura — como estradas e ferrovias — ameaça empurrar o arco do desmatamento para dentro da floresta amazônica, inclusive em terras indígenas.
Um exemplo proeminente disso é o projeto ferroviário que visa conectar o centro-norte do Mato Grosso ao porto fluvial de Miritituba, no Pará. A Ferrogrão é considerada uma obra prioritária por alguns setores do atual governo, com vista ao escoamento das commodities agrícolas produzidas na região Centro-Oeste pelos portos do Arco Norte do país.
Embora amplie a logística agrícola, esse projeto potencializa um risco significativo de acelerar o desmatamento induzido de áreas da Amazônia hoje ainda cobertas pela floresta, em especial as bacias dos rios Xingu e Tapajós — regiões consideradas críticas para a preservação da floresta amazônica, a manutenção do regime hídrico e qualidade das águas e a proteção dos povos indígenas.
E, para além dos impactos da ferrovia em si, outros empreendimentos de infraestrutura de transporte regional impulsionados pela Ferrogrão também podem ser desastrosos para a região. Um deles seria a construção de uma ponte importante no Rio Xingu, não prevista no projeto inicial, dentro do Parque Nacional do Xingu.
A rodovia estadual MT-322, construída na década de 1970 e hoje parcialmente pavimentada, corta o Rio Xingu dentro do Parque Nacional. A travessia do rio é feita por balsas administradas pelas populações indígenas locais. A possível construção de um terminal de transbordo da ferrovia (local de armazenamento e transferência de mercadorias entre diferentes modais de transporte) na cidade de Matupá, no Mato Grosso, pode levar a intensificação do trânsito de caminhões de carga e, consequentemente a pressões para o asfaltamento da MT-322 e construção da ponte. Isso desencadearia a expansão agrícola e no consequente desmatamento em áreas protegidas, com impactos naturais e sociais graves na região.
Sinais de alerta
Os incêndios que estamos testemunhando hoje são um sinal de alerta do que pode se tornar uma crise ainda mais severa se o desmatamento continuar a avançar.
Em 2024, a América do Sul enfrentou incêndios florestais generalizados, muitos dos quais foram deliberadamente iniciados como parte de práticas ilegais de preparação de terras para a agricultura.
Apesar das consequências devastadoras, o uso do fogo permanece comum entre os agricultores. Muitos realizam essa prática há gerações para "limpar áreas para o plantio". No entanto, com as secas prolongadas deixando grandes quantidades de vegetação seca, essa prática se tornou cada vez mais perigosa e difícil de controlar.
E, embora a agricultura seja um dos principais causadores das queimadas, a própria presença de estradas e ferrovias pode gerar incêndios: em algumas situações, a proximidade de infraestruturas cria incêndios espontâneos que aumentam ainda mais os riscos aos biomas do entorno.
As mudanças climáticas, as secas prolongadas e as atividades humanas criam condições para incêndios florestais de grande escala que se espalham rapidamente pela paisagem, estendendo seu impacto muito além das regiões onde começaram.
Essa convergência de fatores transformou incêndios localizados em eventos com consequências regionais ou até continentais, à medida que a fumaça viaja longas distâncias. As nuvens de fumaça que escureceram os céus sobre grandes cidades brasileiras nos últimos meses, reduzindo a qualidade do ar e criando riscos à saúde para milhões de pessoas, são a prova visível disso.
E as consequências podem se voltar contra a própria produção agrícola que se beneficia, no curto prazo, das queimadas ou da expansão da infraestrutura. A Amazônia desempenha um papel crucial no sistema climático da América do Sul, particularmente através do fenômeno dos "Rios Voadores", em que o vapor d'água da floresta é transportado para o sudeste e cai como chuva. Esse processo é vital para a agricultura em grande parte do Brasil, e sua interrupção devido ao aumento do desmatamento pode prejudicar gravemente a produção agrícola do país e a disponibilidade de água.
Soluções urgentes
Em novembro de 2025, o Brasil sediará a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP 30) na Amazônia, uma região severamente impactada por incêndios e desmatamento. A conferência irá revisitar o Protocolo de Kyoto (CMP 20) e o Acordo de Paris (CMA 7).
Diante dos crescentes desafios climáticos, é crucial que universidades, instituições de pesquisa e o setor privado trabalhem juntos para fornecer aos tomadores de decisão os dados e insights necessários para informar políticas acionáveis.
O desmatamento no Brasil já atingiu níveis críticos, e o avanço em áreas protegidas pode deixar os ecossistemas do país em um ponto sem retorno. Em vez de expandir para áreas intocadas, o Brasil deveria focar no uso de terras já desmatadas para novos desenvolvimentos agrícolas. Melhorar a produtividade nessas áreas por meio da inovação tecnológica pode ajudar a atender às necessidades agrícolas do país, prevenindo mais danos ambientais.
A análise de áreas sem estradas ou ferrovias mostra que também é importante manter áreas livres de intervenção humana. A construção indiscriminada de infraestruturas, com novos empreendimentos que comprometerão a integridade dos ecossistemas, pode levar as porções restantes de áreas naturais do país a serem gravemente impactadas.
Ações de proteção legal para a conservação podem fortalecer as metas estabelecidas na Agenda 2030 da ONU. Um foco renovado no desenvolvimento sustentável e na proteção ambiental pode prevenir desastres climáticos futuros.
O Brasil comprometeu-se a alcançar o desmatamento zero até 2030, uma meta apoiada pelo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e ONGs como o WWF. No entanto, para que essa meta seja alcançada, o governo deve tomar ações claras e decisivas.
O país, portanto, enfrenta um conjunto complexo de desafios que destacamos aqui: o combate a crescente ameaça dos incêndios e do desmatamento exige uma combinação de reforma política, implementação de inovações tecnológicas e cooperação internacional e a crucial proteção da Amazônia, não apenas para o futuro ambiental do Brasil, mas também para a estabilidade climática global.
Rodrigo Affonso de Albuquerque Nóbrega recebe financiamento do CNPq.
Vinicius Donisete Goulart e William Leles Costa não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.